Diário de Portugal #2

Lisboa. 4 março 2024.

Buri,

Quando enviei uma carta-diário para J na semana passada, decidi que as próximas entradas (este continua sendo um diário, mesmo que feito de cartas) seriam destinadas a amigas que amo e que hoje estão longe. Esta é para você.

Fiquei pensando esses últimos dias na curiosa tentativa de se estabelecer uma rotina em um lugar estranho. Criatura de hábitos que sempre fui, basta passar uma noite em qualquer nova cidade para que já comece a fabricar costumes. Desfaço a mala o quanto antes, familiarizo-me com os armários da casa, entendo a nova ordem doméstica. Aí então escolho as melhores rotas pelo bairro, elejo um supermercado, minha academia, averiguo as normas e termos locais e vou aos poucos criando minhas novas tradições. Imagino que isso possa te parecer excessivamente ordeiro e talvez até compulsivo, mas há pra mim um tanto de conforto na constância. É nesses singelos novos rituais que vou me resgatando em meio ao desconhecido. Sei que posso estar me contradizendo, uma vez que já afirmei o quanto me interessa o não-saber nesta temporada que estou passando aqui. Mas há de se encontrar, para a saúde de um capricorniano inveterado, uma dose mínima de estabilidade.

Não por acaso uso essas palavras – resgatar/estabilidade. Da janela em frente à qual escrevo avisto um imenso guindaste, uma grua amarela que passa os dias girando em seu próprio eixo de um lado para o outro. Desde meu primeiro dia aqui essas estruturas se tornaram um elemento constante do meu novo cotidiano. Elas estão por toda a cidade, resultado da especulação imobiliária desenfreada dos últimos anos que tornou Lisboa uma das cidades mais inviáveis para se viver na Europa (os custos dos aluguéis sobem sem que os salários locais os acompanhem, fazendo com que a maioria dos portugueses se retirem para novos distritos enquanto os imóveis na cidade concentram-se na mãos de expatriados cuja renda vem de outros países, ou convertem-se em estâncias de locação por temporada). É também possível que essa omnipresença dos guindastes seja uma ocorrência do fenômeno Baader-Meinhof, aquela tendência cognitiva que afeta a maneira como percebemos o mundo e cria uma ilusão de frequência que nos faz acreditar que alguma coisa (um objeto, uma palavra, um conceito) fica aparecendo para nós de novo e de novo. A medida que criamos essa hipótese (os guindastes estão querendo me dizer alguma coisa), nossa atenção volta-se ainda mais para o estímulo em questão e passamos a encontrar as mesmas evidências por todo canto, num ciclo auto-confirmativo e vicioso. Entre as possíveis explicações que fabrico:

  1. As gruas são símbolos que complementam meus sonhos recentes em que sou soterrado por uma avalanche, de dentro da qual, talvez, serei içado;
  2. São uma representação da minha mãe, cuja cor favorita era o mesmo amarelo do ferro dessas estruturas;
  3. Guardam algo do mistério da relação entre peso e leveza (mistério que restou comigo desde que li Richard Serra recordando-se do dia em sua infância quando encontrou sua matéria-prima), justo essas estruturas cujo braço vertical em espanhol chama-se – veja – pluma.

E através de todas essas suposições, deslizo pelos trilhos da memória até uma fala de George Perec (cuja transcrição foi posteriormente publicada no livro Je suis né) sobre a época de sua vida em que ele servia no exército francês como paraquedista. Perec não chegou a ser enviado para lutar na Argélia (além de se opor ao conflito, foi no fim das contas dispensado pois seu pai havia morrido em combate em 1940), mas como recruta completou 13 saltos em treinamento. Ele conta que apesar de repetir a ação diversas vezes, pensava sempre em desistir até o último momento (mesmo sabendo que naquele contexto isso não seria possível), o instante derradeiro em que ele, já aberta a porta do avião, encarava os 400 metros à sua frente, ou seja, o vazio. Naquele instante, em que cada célula no seu corpo ordenava que ele desse meia-volta e retornasse ao seu assento, em que todas as fibras dos seus músculos petrificavam-se, naquele instante, ele afirmava, era preciso ter confiança. Confiança de que, a cada vez, o gancho de liberação funcionaria corretamente, que o paraquedas então se abriria por completo, que ele descenderia à terra em uma velocidade controlada até aterrisar, e que então aquilo tudo chegaria ao fim, que ele teria completado seis saltos ao invés de cinco, ou oito ao invés de sete. Para Perec era naquele momento, o momento de atirar-se, que era colocado o problema da escolha (“o problema da vida como um todo”), o momento em que ele precisava colocar sua confiança em coisas completamente estranhas a ele.

É sobre essa necessidade de confiança que queria lhe falar. A pessoas como nós (e como nossa amiga Elvira Vigna) que, na dúvida, tendem a acelerar, talvez seja quase um disparate (minha nova palavra favorita) simplesmente confiar. Vamos logo à ação, aos planos, ao foco, sem muita paciência. Não há, afinal, tempo. Pois esta semana, passeando pelo parque aqui perto, me deparei com um pequeno quiosque onde funciona uma minúscula biblioteca. Ali é possível pegar um primeiro livro emprestado deixando-se outro, e dali em diante sempre a partir da troca. Deixei uma cópia do meu romance e peguei o único livro que me interessou: “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke. Nunca lera nada do poeta austríaco e seu famoso livro só existia para mim em memórias distantes de menções alheias. Acontece, minha amiga, que são essas as circunstâncias que se apresentam quando se confia. Nestas cartas encontrei as palavras que precisava para esse momento de dúvida e solidão, encontrei a coragem e a paciência para, frente ao vazio, me atirar, de novo e de novo. Para além de qualquer possível idealismo ou exagerada introspecção, Rilke me fez um convite a olhar meus guindastes uma segunda vez, a não domesticar meu novo cenário de forma precipitada, a confiar naquilo que, invariavelmente, chega. Transcrevo aqui para nós um trecho de uma carta sua enviada a Franz Xaver Kappus em 16 de julho de 1903:

Se se ativer à natureza, àquilo que nela é simples, àquilo que é pequeno, que quase ninguém vê, e que tão inesperadamente pode tornar-se grande e incomensurável; se tiver este amor ao que é ínfimo e, de modo inteiramente singelo, como um servidor, procurar ganhar a confiança daquilo que parece pobre: então tudo se lhe tornará mais fácil, mais uno e, de algum modo, mais apaziguador, talvez não no plano do entendimento, que recua, surpreso, mas no mais íntimo da sua consciência, do seu estar desperto, do seu saber. (…) Gostaria de perdir-lhe, tão bem quanto me é possível, que tivesse paciência face a tudo o que no seu coração está ainda não resolvido, e que tente amar as próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos numa língua muito distante. Não investigue agora as respostas que não podem ser-lhe dadas, porque não poderia vivê-las. E trata-se de tudo viver. Por ora, viva as perguntas. Talvez depois, sem dar por isso, paulatinamente, num dia distante, venha a viver o trajecto para dentro da resposta.

Descobri recentemente que as portuguesas chamam as pesquisadoras acadêmicas de investigadoras. Gosto dessa preferência pela palavra investigação. Ela me remete a um gesto ainda mais duradouro, curioso e paciente. Com você, minha amiga, que compartilha comigo a pressa do mundo, divido também também as recomendações de Rilke, que sugere: “deixe que a vida lhe aconteça”. Desejo que possamos encontrar em nós mesmas a atenção, coragem e confiança para seguir investigando, para seguir nos surpreendendo, mesmo quando, à primeira vista, só se estenda à nossa frente o inescrutável nada. E que possamos viver nossas perguntas com a calma de quem acredita, mesmo que desconheça, nas respostas.

Com carinho,

Gabriel