Diário de Portugal #3

Lisboa. 11 março 2024.

Beibi,

Há no quinto andar do Centre Pompidou, em Paris, um quadro do pintor francês Yves Klein intitulado IKB 3, Monochrome bleu. É uma tela de dois metros por um e meio, suspensa no meio da parede branca da galeria, protegida por uma caixa de acrílico transparente. O quadro é inteiramente pintado do azul inventado por Klein (International Klein Blue – IKB), um azul escuro, denso e aveludado. A primeira vez que vi uma obra de Klein foi há alguns anos. Na época, eu desconhecia a história do pintor e sua cor, portanto o que senti foi genuinamente uma resposta direta do meu corpo ao azul, a mesma sensação que agora sempre tenho quando encaro uma dessas telas: há uma suave expansão do meu corpo, uma dilatação dos meus órgãos sensoriais que instantaneamente aguça minha atenção, como se um feche de luz se abrisse no espaço e absorvesse de repente o meu foco. Sinto-me, de certa forma, hipnotizado, ou seja, numa mistura ambivalente de profundo relaxamento, intenso alerta e inevitável vulnerabilidade. É desconcertante. Desde então, sempre tive certa curiosidade por Klein e seu azul, essa cor elusiva que aliciou tantos artistas. Gosto muito de um texto de Dorrit Harazim em que ela relaciona o azul ao desejo e a sua intransponível distância. O azul, essa cor que é tão presente em nosso imaginário e que ainda assim é sempre uma ilusão: no céu, no mar, nos raros seres que a ostentam, devemos esta cor quase sempre a fenômenos de absorção/dispersão/refração no comprimento das ondas de luz, já que quase não há, na natureza, a ocorrência deste pigmento. No texto, Harazim cita a ensaísta norte-americana Rebecca Solnit, que em seu livro “Um guia para se perder” escreveu:

“Há muitos anos que me emociono com o azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica entre você e as montanhas.”

Talvez seja por isso que Klein passou a vida perseguindo seu azul e que seu azul me persegue sempre que estou em sua presença. Não sei muito sobre Yves Klein para além do que ele me faz sentir, mas me parece que há nessa obsessão pela procura do “azul verdadeiro” uma intenção de nos convidar a renunciar, mesmo que temporariamente, a nossas existências corpóreas como as conhecemos e a nos impregnar do imaterial, do irrepresentável, desta cor impossível, para que possamos tentar sentir a partir dela. Não à toa Klein pensava também através da performance (alguns de seus trabalhos com a tinta incluíam o “uso” controverso de mulheres nuas e seus corpos como “pincéis”). Neste seu interesse pela criação de um outro estado de sensibilidade parece haver algo fundamental também a esta arte tão intrigante que tem como matéria-prima as circunstâncias.

Em Lisboa, vi alguns dias atrás uma fala da artista e professora brasileira Eleonora Fabião (falei dela para você). Era o dia de seu aniversário, 29 de fevereiro, esse dia que quase nunca acontece. Ela agradeceu, emocionada, por aquela sala repleta de pessoas (incluindo seu companheiro e sua filha) e por ter a oportunidade de celebrar aquela data falando de seu trabalho (de sua vida). O pouco que conhecia dela e de sua prática chegou até mim através de amigas que tem por ela grande admiração, e logo entendi o porquê. Eleonora produz o mesmo fascínio que Klein com a própria presença. Fala e preenche o espaço de maneira precisa e ágil sem, no entanto, deixar de ser atenciosa com aquelas que a escutam. Falou de alguns elementos essenciais de sua pesquisa e de seu trabalho atualmente em curso, e por fim separou algum tempo para aquilo em que parecia estar mais interessada – a conversa (citando William Pope.L: “Artistas não fazem arte, eles fazem conversas.”). Saí de lá transfixado por uma ideia: e se esta viagem e estes diários-cartas fossem eles também um programa performativo?  

Ao final de cada uma das semanas que passarei em Portugal (seis em Lisboa e duas em Óbidos), escreverei uma carta-diária endereçada a uma amiga (diferente a cada semana) a partir das vivências durante a viagem. As cartas-diários serão também publicadas semanalmente no meu site. Cada uma das cartas deverá ficar pronta, no máximo, ao final do dia na segunda-feira.

Foi este o enunciado que naturalmente me propus (e que só agora escrevo) ao chegar aqui. Uma ação estipulada a ser realizada “sem ensaio prévio”. É esta ação a ser cumprida que vem possibilitando, norteando e movendo minhas experiências durante esses dias. Não saio às ruas em busca daquilo sobre o que possa escrever, mas é o gesto de, a cada semana, sentar junto ao computador em frente à janela e tentar pensar sobre aquilo que experimento que tem cultivado em mim, como imagina Eleonora, um estado de corpo-em-experiência. Neste estado buscado pela artista, renunciamos “ao torpor da aderência e do pertencimento passivos” em nome da desarticulação dos processos ditos “naturais”, em uma – importante salientar – prática que ela relaciona com a noção de Corpo-sem-Orgãos (portanto, des-organizado) de Deleuze e Guattari. É através da proposital mudança de minhas “circunstâncias” (geográficas, mas também sensoriais e psicofísicas) que tenho buscado a sustentação deste estado mais atento, mais poroso. É um estado (ou um sentir-a-si-mesmo, como escrevi na última carta) que é pautado, como defende o dramaturgo Diogo Liberano, não pela lógica da produtividade, mas pelo padecimento de paixões, pela vontade de “levar o corpo para passear”, pela crença de que “escrever não é uma prática do saber, mas uma prática do dispor-se a”. Essas conexões que surgem a cada vez que sento para escrever se apresentam quase que, para usar livremente uma palavra de Fabião, por mágica. É dessa mágica que parecem também surgir, durante essa minha breve visita à Paris, a apresentação de Renato Linhares no Centquatre em que o performer patina (sobre rodas) pelo espaço de uma sala vazia manuseando imensos – não há melhor palavra – seres plásticos, numa dança hipnotizante que dá vida ao inorgânico. Ou ainda a performance da atriz Clotilde Hesme no papel de Hamlet na adaptação da diretora Christiane Jatahy, que encarando a platéia lotada do Odéon, disse em francês as palavras escritas por Sheakspeare há 400 anos. Sentado na segunda fileira, decidi por um instante abrir mão de tentar apreender o sentido do que ela dizia e pude enxergar, nos seus marejados olhos azuis, nós mesmos, todos nós em absoluta mudez, imóveis no escuro, nas poltronas de veludo vermelho e pelos balcões dourados, incapazes de respirar até ouvirmos, em sua assombrada voz, Le reste est silence.

É neste estado que pretendo seguir realizando esta ação, que apesar de aparentemente simples, tem me causado um espantoso desarranjo (bem aquilo de que precisava). Fica aqui então para você, beibi, como oferta ou presente, um programa que espero, caso decida realizá-lo, te traga a oportunidade de ir ao encontro de algo inesperado:

Em um sábado de manhã quando haja sol, sairei de casa e caminharei pelas ruas do meu bairro. Durante todo o percurso, escutarei através dos melhores fones de ouvido que estiverem a minha disposição a faixa “Siebengesang”, de Hans Otte. Não seguirei nenhum trajeto específico, deixando-me levar apenas pela intuição. Não tirarei os fones de ouvido até o final da música, mesmo que seja interpelada por alguma pessoa. Ao final da música, sentarei no primeiro café que encontrar e escreverei, em um caderno, aquilo que meu corpo pedir.

Com carinho e saudades,

Gabriel