Lisboa. 25 março 2024.
Amore,
Segunda-feira. Última semana em Lisboa antes da ida para Óbidos. Chegam do Brasil notícias da vida acontecendo a pessoas queridas, casamentos e filhos, novos trabalhos e outras boas mudanças. Sinto-me distante, de todos e de seus acontecimentos. Comento contigo que às vezes parece que tudo se dá de uma vez só, a despeito de nós. Você tem a mesma impressão.
Aqui, vou almoçar com um casal de amigos. Dirijo até sua nova casa, a meia hora de Lisboa. Os dois sendo arquitetos, desenharam eles mesmos os próprios móveis, incluindo uma imensa estante de madeira clara que envolve duas das quatro paredes da sala, emoldurando também a passagem de entrada do cômodo onde penduraram uma cortina vermelha que dá um ar teatral a nossa cena: além de mim, mais alguns amigos próximos, sentados todos à mesa, comendo a comida que nos foi preparada, lembrando de anedotas passadas e comentando as diferenças no uso do português.
Ela espera um bebê. Eles abrem os presentes trazidos por cada uma de nós, pequenos macacões (um verde, um rosa) que ela segura no ar com as mãos como se fosse a criança e depois dobra sobre a própria barriga. Ele a observa com um sorriso no rosto ao mesmo tempo radiante e impenetrável. Radiante porque esta é a vida que ele desenhou, materializando-se diante dos próprios olhos como a estante projetada para a sala. Impenetrável porque por mais que esse sentimento seja reconhecível, ele não é passível de reprodução.
Me fizeram recentemente a seguinte pergunta: O quê que não dá para ser dito com palavras? Respondi que não sabia. Tudo, afinal, pode ser dito com as palavras. Tudo a não ser talvez a certeza, a tradução exata da experiência. Posso te falar daquele sorriso, da expectativa de todo um futuro condensado em uma tarde, da surpresa recorrente de se perceber pai, do assombro e mistério que gravam esses momentos singelos na memória. Posso te falar que aquele sorriso carregava não só a antecipação de seu portador, mas também a minha, a de todos nós ali reunidos e, de alguma forma, a do mundo inteiro, num misto estranho de estima e orgulho que se manifesta quase que por instinto quando juntos compartilhamos a possibilidade de continuação. Posso te falar disso tudo e você na certa irá me entender, mas não seria capaz de conjurar aquele sorriso aqui, em palavras, para você. Aquele sorriso existiu ali e ali apenas e é essa fugacidade que nos impele a escrever.
Isso não quer dizer necessariamente que escrevemos porque a vida não basta (como defendeu famosamente Ferreira Gullar). Propondo um contraponto à ideia do poeta, a amiga Juliana Leite um dia nos disse que escrevemos justamente porque a vida é muitas vezes demais. Diante de todas as possíveis razões, permanece a pergunta: Por que escrevemos?
Lendo a “Devoção” de Patti Smith essa semana, encontro sua sugestão: Because we cannot simply live. À primeira vista, pode parecer que aqui também vem de uma sensação de escassez a motivação da artista para seguir recorrendo à caneta e folha em branco. Mas talvez não seja bem isso. Para Patti (e possivelmente também para Ferreira Gullar), talvez seja inconcebível ‘apenas viver’ porque existe a ficção (que prefiro usar ao invés de “arte”). Escrevemos porque só assim nos é possível tentar acomodar a realidade, porque nos é inegociável a chance de questioná-la e reimaginá-la, de buscar além de seus limites algum sentido (direção/rota) quando dentro dela já não se encontra, de reconfigurar suas forças e assim lembrá-la de algo que ela esqueceu ou quis esquecer sobre si mesma (como sugere Diogo Liberano).
Há ainda um tanto que gostaria de lhe dizer e lhe perguntar sobre a ficção, mas hoje esse é todo o tempo que eu tenho (a realidade às vezes também irrompe nos limites do texto). Te mando junto desses parágrafos meu desejo de que corra tudo bem amanhã e de que em breve sejamos nós a mandar boas notícias para o mundo.
Com amor,
Gabriel
