Diário de Portugal #6

Lisboa. 31 março 2024.

Meu bem bem,

Começo aqui mais uma carta-diário. Escrevo essa frase e me levanto. Vou preparar um chá, cortar as unhas, esvaziar o tanque do desumificador da sala. O documento do Word me diz que a palavra “desumificador” não existe, então eu adiciono-a ao dicionário do meu computador. Satisfaço todas as pequenas distrações com indulgência, são 8 da manhã do domingo de Páscoa, há pela frente ainda muito tempo para chegar ao fim de mais esse texto e, chegando a tal fim, desfrutar da sensação de completude. Passo então os dois ou três dias seguintes sossegado, até que aos poucos volta a me habitar a pergunta tão familiar de todas essas últimas semanas: como começar (mais uma vez)? Não me passa despercebida a ironia desse ciclo: A despeito de qualquer ímpeto triunfal que vem com o aparente desfecho, o que de fato move a palavra é o retorno à página em branco. Como começar?

Essa é uma pergunta que habitamos juntas por um tempo recentemente. Entre outubro e dezembro do ano passado, passamos algumas semanas procurando uma resposta enquanto escrevíamos e encenávamos uma dramaturgia para nosso grupo teatral (por falta de melhor nome). Éramos 14 pessoas, todas ali, em primeiro lugar, pelo desejo de trabalhar juntas e de se exercitar, de praticar, sem nenhuma certeza a não ser a vontade comum de desenvolver algo a partir de um texto concreto, um texto “completo”. Fomos levadas por uma tendência metaficcional (o Word também não conhece a metaficção, adiciono ao dicionário) e a dificuldade de encontrar um tema comum a todas nós acabou por se tornar a matéria em si da nossa pesquisa, traduzindo-se naquela mesma pergunta: como começar? Depois de experimentar diversas respostas, M e eu então propusemos uma dramaturgia escrita a quatro mãos, uma costura de dois trabalhos nossos, diferentes em estilo e forma, mas guiados pela mesma investigação a respeito do fim de uma relação amorosa, esse evento que parecia também circundar o imaginário de todo o grupo há tempos. Naturalmente incluímos no texto final nossa dificuldade em encontrar um começo para aquela história a ser contada. Na primeira cena, com todas as atrizes presentes no espaço, indagávamos umas às outras sobre a melhor forma de se iniciar uma peça (um texto, um relacionamento) e descambávamos para um bate-boca acalorado em que algumas de nós defendia a validez daquele autoquestionamento enquanto outras taxavam-no de cafona e preguiçoso (usando ainda aquele mesmo recurso dramatúrgico de trazer para dentro do texto um receio que nos assombrava fora dele). Recordo aqui esses detalhes por acreditar ser importante, como criador, fazer esse exercício de memória acerca do processo de um trabalho independente de seu resultado, mas também porque talvez ali encontrem-se algumas lições possíveis para esse momento de agora. Fizemos uma abertura de processo daquele trabalho, montando uma versão possível da dramaturgia e apresentando-a para algumas amigas em dezembro, sem, no entanto, retomá-la desde então. Talvez voltemos a visitá-la em breve, talvez não, mas nem por isso aquele foi o seu fim. Se estou aqui sentado a pensar no que vivemos juntas, nas inúmeras maneiras que imaginamos de se iniciar o relato do fim de um amor, é porque aquele começo segue reverberando fora do meu controle, no presente e além.

Comentando uma das cartas-diários passadas, uma amiga me lembrou do conceito de começo-meio-começo de Nêgo Bispo, por meio do qual o autor, deparado com a questão de como definir ou dimensionar o tempo, faz um contraponto à noção cristã-ocidental de desenvolvimento e finalidade. Trago aqui um trecho de seu livro “Colonização, Quilombos: Modos e Significados” que pode nos ajudar a pensar:

Como já falamos, faz-se por bem entendermos que as populações desenvolvem sua cosmovisão a partir da sua religiosidade e é a partir dessa cosmovisão que constroem as suas várias maneiras de viver, ver e sentir a vida.
O povo eurocristão monoteísta, por ter um Deus onipotente, onisciente e onipresente, portanto único, inatingível, desterritorializado, acima de tudo e de todos, tende a se organizar de maneira exclusivista, vertical e/ou linear. Isso pelo fato de ao tentarem ver o seu Deus, olharem apenas em uma única direção. (…)
Quanto aos povos pagãos politeístas que cultuam várias deusas e deuses pluripotentes, pluricientes e pluripresentes, materializados através dos elementos da natureza que formam o universo, é dizer, por terem deusas e deuses territorializados, tendem a se organizar de forma circular e/ou horizontal, porque conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas as direções.

Nêgo Bispo parte dessa idea para traçar um panorama histórico de como se formou e desenvolveu a sociedade brasileira a partir da invasão dos colonizadores europeus e do extermímio e escravização dos povos afro-pindorâmicos1. Sabemos que esse processo resultou, nas palavras do autor, em uma acelarada “degradação e expropriação territorial seguida da conformação de grandes latifúndios voltados à monocultura de exportação, a urbanização e a industrialização desenfreados”, que caracterizou o desenvolvimento da economia capitalista no Brasil e se intensificou desde a Ditadura de Getúlio Vargas até o atual chamado Estado Democrático de Direito. É essa cosmovisão – essa forma de ver e entender o mundo – que segue informando nossa relação exploratória com a natureza, com outras pessoas e também com nosso processo criativo (logo, meu anseio pela conclusão e por um fim absoluto). É essa lógica linear do progresso que orientou meus próprios antepassados que por vezes me impede de fazer refluxos (outra imagem que encontrei no livro de Nêgo Bispo). No entanto, só pelo refluxo é que podemos retornar ao começo e à imensidão de possibilidades que esse gesto carrega.

Por sorte, temos as amigas que não falham em nos lembrar que há outras formas de se elaborar o pensamento e de se experienciar a vida. A noção de começo-meio-começo me ajuda a perceber que enquanto tentávamos encontrar uma maneira possível de narrar o fim de um amor, escrevíamos mais um começo para a nossa própria história de trabalho e amizade. Distraídas pela nossa obsessão em representar o término de um relaciomanto amoroso – certamente também influenciada por nossa visão judaicocristã que privilegia esse tipo de estrutura familiar como única forma de vida –, deixamos de nos lembrar que o que fazíamos era também um ato político em uma outra direção, voltada para uma vida compartilhada entre amigas. Evidente que terá de ser constante o esforço em tentar enxergar além dos limites que historicamente impusemos a nos mesmas e que reproduzimos sistematicamente. Mas com vocês tudo parece um pouco mais possível.

Encerro aqui mais uma carta-diário. Abriu o sol nos telhados molhados de Lisboa. Adianto o relógio uma hora, hoje é o primeiro dia do horário de verão no hemisfério norte (aqui também chamado “hora de verão”). É o início da primavera, mais uma. Pequenas folhas verde-claras despontam nos galhos esturricados e milhares de margaridas passam a cobrir os gramados. Vou ao parque agora à tarde tirar uma foto para você ver. Sei que iria gostar. Amanhã sigo para Óbidos, para mais um começo.

Com carinho,
Gabriel

  1. Pindorama é a expressão tupi-guarani para designar todas as regiões e territórios da hoje chamada América do Sul. ↩︎