Óbidos. 8 abril 2024.
Burizin,
Você reclama que não sabe mais da minha vida, que minhas novidades chegam a você só através de outras pessoas. Essa carta-diário é, portanto, para ti, para que fique sabendo dos meus dias:
Segunda-feira, dia 1º
Primeiro dia em Óbidos. Sentado em um quiosque na única praça, tomando um vinho e escrevendo sobre a mesa bamba (duas razões para a péssima caligrafia). A vila tem o charme característico dos sítios medievais. Lembra-me muito Mértola – que visitei na minha última vinda a Portugal –, no entanto parece-me ainda menor e a quantidade de turistas é imensamente superior. As duas únicas vias principais estão atabalhoadas de gente e logo começo a me incomodar, como se não fosse eu também um visitante. A casa é confortável. Trago as minhas malas do carro, vou ao mercado. Carregando as bagagens e as sacolas de compras, atraio alguns olhares. Sou uma figura um tanto atípica neste cenário temporário. A maioria das pessoas passa apenas algumas horas dentro das muralhas. Mesmo aquelas que trabalham aqui, como Elma, funcionária do município que me recebe, não moram dentro da vila. Elma me conta que aqui dentro há apenas 20 habitantes, quase todos idosos. Eu sou o 21º. A população de visitantes, no entanto, faz sentir sua presença. Todas as casas aqui são pintadas de branco exceto por uma faixa colorida na parte inferior e nas quinas, cada cor com seu próprio significado: cinza para as construções religiosas, azul para os edifícios públicos, vermelho para os de famílias historicamente mais abastadas e amarelo para os restantes. Com o intuito de proteger o patrimônio histórico, a tinta usada é um pigmento orgânico que mancha facilmente, e com o tempo os visitantes de Óbidos passaram a “pintar” as paredes brancas de azul com os dedos. Diversos nomes e corações estampam as casas pela vila em um aparente desejo de deixar alguma marca neste sítio secular. Suponho que haja um pouco deste mesmo desejo em minha decisão de fazer uma residência aqui, uma vontade de deixar alguma marca. Sento-me no canto mais afastado do café e duas mulheres vem se sentar próximas de mim. Não consigo identificar seu idioma, imagino que seja alguma língua eslava. Tento começar a ler “O ano da morte de Ricardo Reis”, mas não consigo. Trouxe também todos os meus antigos cadernos, na expectativa de que a viagem seja de alguma forma uma visita ao passado. Impossível não se sentir tentado a olhar para trás em um lugar como este. No caminho distraído de volta para casa, sou abordado por um senhor que me pergunta se preciso de direções. Seu Carlos mora aqui há 35 anos, em uma das ruas externas adjacentes aos muros da vila. Ele me diz que já foi ao Rio de Janeiro, ao Recife, à Olinda e a Porto de Galinhas, mas que seu lugar preferido no Brasil é São Salvador da Bahia. Pede desculpas porque, segundo ele, quando os velhos de Óbidos encontram um jovem que lhes dê atenção, às vezes falam um tanto demais. Com orgulho, conta-me do filho que foi estudar música em Viena e hoje mora em Berlim, onde ele e a esposa irão visitá-lo na semana que vem. Nos despedimos e dissemos até logo, sem que ele deixe de me advertir para a possibilidade de que não se lembre do meu nome da próxima vem que nos encontrarmos. Estou chegando aos 80, ele explica.

Terça-feira, dia 2
Ricardo Reis chama o hotel em que se hospeda assim que chega à Lisboa de um “lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa”. É assim também para mim a residência de Ruy Belo. O site do município de Óbidos diz que se acredita que a vila tenha sido edificada pelos Celtas em 308 antes de Cristo. Imagino que se refiram ao castelo e suas muralhas, mas as outras construções não devem ser muito menos antigas. Como Ricardo, venho a Portugal sem nenhum negócio específico a tratar. As pessoas me perguntam se estou aqui a lazer ou a trabalho e não sei bem o que responder. Escrever não me parece que se encaixa em nenhuma dessas opções.
A casa de Ruy Belo é uma construção antiga, relativamente pequena e aconchegante. Há uma sala-cozinha e um quarto no primeiro andar, e no segundo mais dois quartos, um de dormir e outro usado como escritório, de onde é possível acessar uma pequena varanda que tem vista para o castelo. Escrevo neste cômodo, onde há também uma pequena janela de onde, quando sentado à mesa, só consigo enxergar o céu. Não conhecia Ruy Belo antes de vir para cá. Todos os quartos estão repletos de livros que eram seus e que sua família doou para o programa de residência de Óbidos. Ao lado da porta de entrada da casa, há uma pequena placa de acrílico com seu nome indicando que aquela é uma residência literária. A plaquinha gera certa curiosidade nos visitantes, que volta e meia param em frente à casa para tirar uma foto, sem suspeitar que há alguém hospedado aqui. Hoje de manhã, ao ouvir algumas vozes do lado de fora, aproximei-me da pequena janela que há na porta de entrada e dei de cara com uma senhora japonesa que quase caiu para trás. Abri a porta e a cumprimentei, perguntando de onde era e contando o que eu fazia ali. Deve ter pensado que eu era um espírito ou algo ainda mais insólito: um escritor.

Quarta-feira, dia 3
Termino de ler meus cadernos dos últimos anos hoje de manhã e me vem aquela mesma surpresa de descobrir, sempre como se pela primeira vez, a imensa quantidade de vidas que cabem numa mesma pessoa. Decido ir conhecer a Lagoa de Óbidos para aproveitar o dia ensolarado. Almoço um prato de amêijoas em um restaurante à beira d’água. Depois paro o carro em uma estradinha de terra no meio do mato e vou caminhando até uma pequena praia isolada. Em um outro ponto distante da margem, avisto um pescador. Somos só ele e eu. Tiro os sapatos e a camisa e deito-me na areia. Percebo que é a primeira vez em 45 dias que sinto o sol no peito, na barriga. É um calor raro este que esquenta a minha pele, uma sensação preciosa. De lá, sigo para a praia de Bom Sucesso, em um dos lados do canal que conecta a lagoa ao mar. A lagoa de Óbidos é, na verdade, uma laguna, uma depressão geográfica de pouca profundidade separada do mar por uma barreira natural feita de dunas, através das quais a água salgada flui rasa e gelada. É um corpo d’água, feito o meu. Há uma grande falésia em um dos lados da praia da qual não se pode chegar muito perto por risco de desabamentos. Busco na areia uma pequena pedra branca e guardo-a no meu bolso. Caminho até o mar, subo a barra das calças e deixo que ondas absorvam os meus pés magros. Enfim sinto saudade de casa.
Quinta-feira, dia 4
O fim da viagem se aproxima. É curioso que essa residência se dê no final das 8 semanas em Portugal. A palavra residência traz uma sensação de permanência que não se encaixa com a natureza temporária do período que passei aqui, ainda mais agora, quando mais um fim se aproxima. Estou muito consciente da minha atual condição de passante. A grande quantidade de livros e histórias sob esse teto me lembram de que sou apenas mais um capítulo. Na semana passada, escrevi sobre os fins e os começos e sobre o quanto eles têm me atraído. Suspeito que seja disso que vá tratar o próximo livro. Digo “suspeito” porque para mim, por mais concretas as hipóteses que tenho sobre o romance, sinto-me, na maior parte do tempo, trabalhando vendado. A escrita é um jogo de tatear, de apalpar delicadamente o escuro. Me perguntaram o que eu poderia fazer com uma residência literária de apenas duas semanas, como se esse fosse um tempo insignificante dentro da vagarosa empreitada que é escrever um livro. É de fato muito pouco tempo, mesmo que aqui o tempo pareça passar um pouco mais devagar, os sinos da igreja soando a cada quarto de hora. Também não estou tão acostumado a passar muitas horas seguidas escrevendo. Manuseio o texto com certa cautela e parcimônia, não por nenhum preciosismo com a palavra, mas por conta do seu peso e temperatura, que ainda não consigo sustentar por muito tempo. Imaginei que essa temporada em Portugal me faria encontrar novas entradas e saídas para o labirinto narrativo onde me encontro, que passaria noites em claro na casa de Ruy Belo a tecer minha trama. Na verdade, sigo perdido. E, ainda assim, este foi um dos períodos da minha vida em que mais li e escrevi, em que passei mais tempo pensando sobre e registrando minha própria metodologia. Foi renunciando ao desejo de encontrar a história que se abriu para mim a janela do processo, esse que, pelo menos no meu caso, mistura tudo que se dá na vida à ficção. Na verdade, as cartas-diários são também a história, são também linhas do livro, mesmo que nunca apareçam nele. Elas me lembraram de habitar a escrita fora da lógica da utilidade. A escrita como exercício de investigação sem promessas, como viagem sem destino. Como a mão que avança inquisitiva pelo breu até ir de encontro ao toque, até achar, numa praia distante, uma pequena pedra que possa levar de volta para casa.

Sexta-feira, dia 5
O fim da viagem se aproxima. Esta é a frase que segue ecoando. Retorno ao Brasil em alguns dias e me volta à cabeça a mensagem que J me enviou em primeiro dia em Portugal: “aguardo aqui por tudo que você vai me ensinar quando voltar, mesmo que da viagem nunca se volte.” Pergunto-me se é mesmo impossível a volta. O fim da viagem se aproxima, mas se os finais foram colocados em xeque talvez esse que se aproxima seja outro fim, o fim como finalidade, como intenção. Como aquilo que se busca, conscientemente ou não. Acho que esse fim acomoda uma volta que não é completa, que não se pretende inalterada. Uma volta que é em si uma nova chegada, um convite a trazer os olhos da viagem para o lugar habitual da partida. Acho que é isso que J quis dizer quando disse que da viagem nunca se volta. Há algo nosso que fica, alguma fração do olhar que resta e que continuamos a acessar mesmo à distância. É assim na viagem como na escrita.
Com carinho,
Gabriel