Diário de Portugal #8

Óbidos. 11 abril 2024.

Querida C.,

Essa é a carta-diário mais difícil. Passei os últimos dias tentando concebê-la. Escrevi alguns começos possíveis à mão em um bloco de folhas pautadas que comprei no supermercado próximo à vila. Quis experimentar escrever a carta à mão como fazia nas primeiras correspondências que trocamos quando morávamos de lados opostos do Atlântico. Fazia tempo que não escrevia uma carta dessa maneira e, conforme as palavras foram preenchendo as linhas no bloco de notas, me lembrei da euforia tão particular do instante em que chegava em casa e abria a caixa do correio ansioso pelas tuas respostas. Havia contido na imensidão que separava cada mensagem da próxima um vigor de antecipação que tomava meus dias e me impulsionava pelas ruas como se levitado por meus próprios pulmões. A decepção de encontrar a caixa de correio vazia só não era maior que o júbilo de descobrir em seu interior o pequeno envelope com meu próprio nome e endereço escritos na tua letra. Eu então me sentava na mesa da cozinha e abria o envelope com uma das facas que buscava ansioso na primeira gaveta da copa. Lia a tua mensagem uma primeira vez afobado, mal retendo tudo que você dizia, para evitar que as frases me escapassem, e depois mais uma, com calma, notando os pequenos detalhes da tua caligrafia, a variação de pressão da caneta na página, as tuas escolhas. Imaginava você dobrando o papel, selando o envelope, introduzindo a carta em uma das caixas postais azuis espalhadas pela cidade. Buscava todos aqueles teus pequenos gestos no maço de papel que segurava nas minhas mãos e que depois guardava com cuidado em uma caixa dentro do armário. Eu visito essas memórias enquanto escrevo agora esta última carta-diário e percebo o quanto esse tipo de recordação me é familiar, o quanto já escrevi sobre isso em outros momentos, em outras circunstâncias. Afinal talvez seja mesmo essa a minha matéria, a massa que tento moldar com as mãos: o tempo, a memória. Nem o receio de me repetir afasta de mim essa substância que sempre volta, rastejando. É por isso também que mantive um diário de viagem, para cavar em mim mesmo os sulcos por onde mais tarde vai escorrer esse óleo. Enviei cada uma das entradas como cartas para amigas para que, de alguma forma, a viagem pudesse continuar acontecendo, mesmo depois de chegar ao fim. E pelo mesmo motivo endereço esta última a você, para tentar conciliar o fim da viagem a uma virada de página na nossa história. Na verdade, ainda sinto um apego à ideia de finais plenos e catárticos, desses que imaginamos capazes de trazer algum alívio para a falta de sentido que às vezes encontramos nos parágrafos da vida. O desejo de enviar a última carta-diário para você é um sintoma dessa minha inclinação gozada ao sublime que muitas vezes descamba para o sentimentalismo. Fico buscando uma maneira apropriada de narrar o fim, de apreendê-lo em alguma forma com a linguagem. Quando ele inevitavelmente me escapa, passo então um tempo paralisado, lamentando. Queria que junto desta carta e deste diário eu me despedisse também desta minha cisma que é quase sempre o que me impede o trabalho. Esta carta para você é portanto uma carta em defesa dos finais possíveis e incompletos, dos finais como dobra. Li recentemente a defesa que a autora norte-americana Ursula Le Guin faz da ficção como cesta, em oposição à ideia da ficção como lança. A ficção não como o projétil lançado linearmente em direção ao conflito e sua resolução, mas como um recipiente que acomoda toda a ambivalência contida no imenso emaranhado de histórias que contamos umas às outras por gerações. Ocorre-me que as cartas-diários foram minha cesta durante essa viagem, a bagagem onde fui juntando aquilo que fui encontrando no caminho e que por vezes contradizia o que já estava ali guardado. Nessa mala cabe a minha vontade persistente de dar à nossa história, sua e minha, um fim definitivo, como também cabe a descoberta de um fim que não se encerra e que instaura por si próprio um novo começo. Um fim que, inserido na temporalidade espiralar das histórias, se curva constantemente em todas as direções, empilhando presente, passado e futuro (como nos ensina a grande ensaísta, poeta, dramaturga e professora brasileira Leda Maria Martins). É essa natureza espiralar da memória que senti no meu corpo enquanto estive hospedado na sua nova casa nas últimas semanas. Depois da sua mudança para Portugal, foi curioso me encontrar novamente dentro do seu universo, como se ele nunca tivesse deixado de ser também o meu. É claro que eu esperava te reconhecer em todos os cantos do apartamento em Lisboa que você deixou aos meus cuidados enquanto passava uma temporada no Brasil, mas para minha surpresa reconheci ali também a mim mesmo. Nos sinais dos teus hábitos domésticos, encontrei aqueles que adotei para mim e os que transmiti a você nos anos em que estivemos juntos. Na sua atual narrativa, li sinais da nossa história passada que fazem hoje também parte da minha própria vida. Essa coabitação entre diferentes tempos em um mesmo espaço prova que os eventos que narramos, quando fora dessa cronologia linear, seguem em constante transformação e reatualização. É isso, afinal, que fazemos nós, pessoas que contam histórias, ao chegar ao fim: nós continuamos. Obrigado por me lembrar disso. Embrulho esse suvenir com cuidado e coloco-o também na minha mala de viagem – minha cesta – para trazê-lo de volta comigo. Vou até a varanda da residência de Ruy Belo e observo mais uma vez os telhados de Óbidos circundados pelos muros centenários. Avisto as viajantes que caminham pelas ruelas da vila, cada uma com sua própria bolsa, sua bagagem pessoal e coletiva de histórias, e sinto chegando a familiar combinação de nostalgia e expectativa que sempre vem ao fim de uma boa viagem.

Com carinho,
de Portugal,
Gabriel