sombra

deslizo-me aos teus pés
inquieta
silenciosa
sou ausência e
ainda assim
tua própria imagem
tua silhueta, teus movimentos
teu corpo opaco
grosso, delgado
sou apenas o resultado
de uma intercepção
um espírito desencarnado
se um traço bem definido
ou um vulto manchado
estou sempre, haja luz,
contigo

-2018

s.t.

I look at him while he’s still asleep, the faint sunlight starting to shine through our window, the window of his apartment, while he lies his face against his thin pillow, his long eyelashes trembling full of dreams, his naked body spent over the sheets, I look at him in total control, at last, and realize what I must and do not want to do.

-2018

foreclosure

As sacolas do mercado pesam sobre as mãos delicadas – talvez tenha subestimado a distância do percurso, talvez devesse ter vindo de carro, pegado um taxi. Mas está sol, uma manhã de sábado afinal, a posta de salmão, os figos frescos e as nozes pecan, o almoço com a família que aos poucos acorda em casa. Ela toma o caminho de sempre, o caminho tranquilo, fresco, cheio de sombra, coberto pela copa das árvores repleta de frestas de luz que malham as calçadas, como o pelo de uma onça, ou o chão de uma discoteca. Ela caminha distraída pela própria sorte, desviando os sapatos das falhas na geometria das pedras portuguesas. Logo mais a frente percebe um amontoado contra a mureta de um prédio, cobertas velhas e papelões descartados, uma sacola de plástico repleta de trapos. Ela sente os músculos dos ombros contraírem-se – involuntariamente – e as compras pesam ainda mais, a pele fina das palmas suadas ficando cada vez mais vermelhas. Acerta sua trajetória em alguns centímetros à esquerda como tantas outras vezes, especialmente nessa época mais fria do ano em que encontros como esse tornam-se mais frequente. Mais à frente, sua casa está do outro lado da rua, mas ela, correta, evita atravessar a pista. A família espera e ela tenta passar reto ao lado do volume disforme abandonado à calçada, mas é então tomada de um súbito horror quando debaixo dos panos secos sai um pé. Seu olhar é preso: a pele negra ressecada em volta dos tornozelos, as unhas escurecidas, a couraça branca da sola toda rachada como as pedras portuguesas. Ela vê o pé, impossível não ver o pé, vê o corpo murcho sobre as cobertas sujas, a carne encardida do pé, o membro fétido, uma força indigente tomando a calçada tranquila, fresca, cheia de sombra, um grande pé negro no meio do caminho. Enfim desvia o olhar, passa reto e corre à casa, à família, ao almoço do final de semana, decidida de que a partir de agora sempre atravessará a rua quando necessário.

-2018

carta de b.

amigo,
que importância?
às vezes acredito que muita
às vezes que nada
As coisas, agora, me ouve:
tenho os olhos abertos
e tudo gira tão depressa
sei
tenho os olhos fechados.

é difícil estar no mundo
(sera que sempre?)
grande demais
rotinas muitas
aqui posso ser toda
em partículas, amigo
capaz de algo mais
do que o agora

é um espelho enferrujado
a tua existência.

verdade que envelhecemos?
será justo
assim
ainda
um espirito qualquer que fale conosco?
minhas pernas andam
cansadas
tola barriga que sempre caiu sobre a cabeça fraca
tenho medo de acordar
de chegar a hora para sempre
olho pro sol apressado
vejo absurdo
vejo beleza
uma garrafa do lado da minha cama
e nas primeiras linhas chorei
de tristeza, melancolia e saudade.
Mas dividiria contigo
um abraço
forte,
apertado,
demorado.
escreve.

-2018

s.t.

Seus olhos são amarelos, esferas inteiramente amarelas com minúsculas veias vermelhas correndo por toda sua superfície, seu sangue frio, seu couro quente e escurecido, todo preto, escamas eriçadas descendo-lhe a espinha, suas patas gordas sobre o meu corpo, todo seu peso monstruoso sobre meu corpo, suas garras profanas, sua carapaça oleosa roçando contra minha pele, seu hálito arfante de enxofre velho me tonteando, longas lágrimas de fumaça verde subindo de suas narinas acesas como dois incensos, suas asas erguidas acima do corpo a perder de vista, seu tronco réptil me prendendo contra o chão, me arrastando à força, sem minha adaga, contra tal serpente fabulosa, sou presa.

-2018

s.t.

ele me liga
é tarde mas atendo
às vezes não, ignoro
mas atendo
vamo tomar uma cerveja?
desde que tomamos a primeira juntos
ainda moleques
as primeiras, juntos
os primeiros, juntos
vamo
ali mesmo
na sarjeta aqui de casa
tanto faz
e como vai o trabalho?
e a família?
o namoro?
e as risadas, juntos
o humor antigo
compartilhado
e de repente nos abrimos
logo somos dois homens adultos
chorando juntos
dois moleques
sem saber o que dizer
um pro outro
além de ficar num silêncio
cúmplice
soluçando na sarjeta
escondida
até que tudo fique bem
até sermos adultos
novamente

-2018

s.t.

Depois de um longo silêncio em que os dois escutavam suas respirações sincronizarem-se, imaginando todas as possíveis descobertas que fariam um sobre o outro, assim como ainda há pouco haviam desvendado o segredo de suas intimidades, enquanto a luz do sol ia agora desaparecendo atrás das cortinas do quarto, ela enfim pergunta, saciando a mais honesta curiosidade, se ele, dado a chance, ingressaria numa viagem sem volta a Marte.

-2018

s.t.

It was dancing that she fully seized her personality. Swaying her shoulders back and forth, allowing her long arms to dangle gracefully like two silk strips rocking on each side of her slender torso, making sure she wittily snapped her fingers at the end of each movement, as if to mark the tempo of her own body. Her hips seemed to defy gravity as they traced different geometries in the air around her waist, her feet steadily planted on the ground just because she liked the challenge of not being able to move them. All along, her eyes are shut and her lips are slightly open, that’s the way she focused all her attention to her hearing, so that she could welcome the music into herself in a full surrender. Dancing gave her an unwavering sense of who she was.

-2018

Regina

Regina era o nome que ele tinha tatuado no braço. De comprido, ocupando todo o espaço entre o cotovelo e o pulso. A letra barroca, o R todo floreado, a tinta escura eternizada na epiderme. Um corpo desfigurado, o ritual da cicatriz, a oferenda do órgão ao amor. Às vezes ele ainda sentia a inscrição latejando, esgarçando-lhe a pele, pulsando com o sangue corrente: Regina, Regina, Regina. Então buscava o celular no bolso e procurava seu nome no aplicativo de mensagens. Abria a conversa vazia e via seu rosto na foto de perfil, o rosto que já quase não mais reconhecia, ao lado do nome, pelo menos o nome que ainda lhe era familiar. Regina. E logo abaixo, em raras ocasiões, surgia, online. Regina, online. Do outro lado da tela, com o aparelho certamente em punho, ambos presentes no mesmo instante como há muito não mais, no mesmo espaço-tempo, Regina. E logo o sinal que indicava sua conexão sumia e sobravam-lhe apenas o chat brilhando, a fotografia alheia, e o nome dela tatuado no braço. Para sempre.

-2017

tangerina

 

me apaixono toda vez que te vejo comer uma tangerina
deitado em deleite assistindo aos teus dedos
arrancando o caule seco e perfurando a casca rugosa
descamando aquela cobertura laranja-lustrosa
explodindo o nosso quarto em perfumes cítricos
que depois custam a sair dos lençóis
fico todo inspirado a cada gominho arrancado
a maneira como extrais as pequenas fibras do bagaço
tão delicado
e um calafrio me sobe à espinha
toda vez que tu levas à boca um daqueles diamantes
e decides partir com os dentes a fruta ao meio
toda arrepiada com a acidez do suco que te escorre
pelos lábios

lá em casa sempre haverão tangerinas

-2017