Diário de Portugal #8

Óbidos. 11 abril 2024.

Querida C.,

Essa é a carta-diário mais difícil. Passei os últimos dias tentando concebê-la. Escrevi alguns começos possíveis à mão em um bloco de folhas pautadas que comprei no supermercado próximo à vila. Quis experimentar escrever a carta à mão como fazia nas primeiras correspondências que trocamos quando morávamos de lados opostos do Atlântico. Fazia tempo que não escrevia uma carta dessa maneira e, conforme as palavras foram preenchendo as linhas no bloco de notas, me lembrei da euforia tão particular do instante em que chegava em casa e abria a caixa do correio ansioso pelas tuas respostas. Havia contido na imensidão que separava cada mensagem da próxima um vigor de antecipação que tomava meus dias e me impulsionava pelas ruas como se levitado por meus próprios pulmões. A decepção de encontrar a caixa de correio vazia só não era maior que o júbilo de descobrir em seu interior o pequeno envelope com meu próprio nome e endereço escritos na tua letra. Eu então me sentava na mesa da cozinha e abria o envelope com uma das facas que buscava ansioso na primeira gaveta da copa. Lia a tua mensagem uma primeira vez afobado, mal retendo tudo que você dizia, para evitar que as frases me escapassem, e depois mais uma, com calma, notando os pequenos detalhes da tua caligrafia, a variação de pressão da caneta na página, as tuas escolhas. Imaginava você dobrando o papel, selando o envelope, introduzindo a carta em uma das caixas postais azuis espalhadas pela cidade. Buscava todos aqueles teus pequenos gestos no maço de papel que segurava nas minhas mãos e que depois guardava com cuidado em uma caixa dentro do armário. Eu visito essas memórias enquanto escrevo agora esta última carta-diário e percebo o quanto esse tipo de recordação me é familiar, o quanto já escrevi sobre isso em outros momentos, em outras circunstâncias. Afinal talvez seja mesmo essa a minha matéria, a massa que tento moldar com as mãos: o tempo, a memória. Nem o receio de me repetir afasta de mim essa substância que sempre volta, rastejando. É por isso também que mantive um diário de viagem, para cavar em mim mesmo os sulcos por onde mais tarde vai escorrer esse óleo. Enviei cada uma das entradas como cartas para amigas para que, de alguma forma, a viagem pudesse continuar acontecendo, mesmo depois de chegar ao fim. E pelo mesmo motivo endereço esta última a você, para tentar conciliar o fim da viagem a uma virada de página na nossa história. Na verdade, ainda sinto um apego à ideia de finais plenos e catárticos, desses que imaginamos capazes de trazer algum alívio para a falta de sentido que às vezes encontramos nos parágrafos da vida. O desejo de enviar a última carta-diário para você é um sintoma dessa minha inclinação gozada ao sublime que muitas vezes descamba para o sentimentalismo. Fico buscando uma maneira apropriada de narrar o fim, de apreendê-lo em alguma forma com a linguagem. Quando ele inevitavelmente me escapa, passo então um tempo paralisado, lamentando. Queria que junto desta carta e deste diário eu me despedisse também desta minha cisma que é quase sempre o que me impede o trabalho. Esta carta para você é portanto uma carta em defesa dos finais possíveis e incompletos, dos finais como dobra. Li recentemente a defesa que a autora norte-americana Ursula Le Guin faz da ficção como cesta, em oposição à ideia da ficção como lança. A ficção não como o projétil lançado linearmente em direção ao conflito e sua resolução, mas como um recipiente que acomoda toda a ambivalência contida no imenso emaranhado de histórias que contamos umas às outras por gerações. Ocorre-me que as cartas-diários foram minha cesta durante essa viagem, a bagagem onde fui juntando aquilo que fui encontrando no caminho e que por vezes contradizia o que já estava ali guardado. Nessa mala cabe a minha vontade persistente de dar à nossa história, sua e minha, um fim definitivo, como também cabe a descoberta de um fim que não se encerra e que instaura por si próprio um novo começo. Um fim que, inserido na temporalidade espiralar das histórias, se curva constantemente em todas as direções, empilhando presente, passado e futuro (como nos ensina a grande ensaísta, poeta, dramaturga e professora brasileira Leda Maria Martins). É essa natureza espiralar da memória que senti no meu corpo enquanto estive hospedado na sua nova casa nas últimas semanas. Depois da sua mudança para Portugal, foi curioso me encontrar novamente dentro do seu universo, como se ele nunca tivesse deixado de ser também o meu. É claro que eu esperava te reconhecer em todos os cantos do apartamento em Lisboa que você deixou aos meus cuidados enquanto passava uma temporada no Brasil, mas para minha surpresa reconheci ali também a mim mesmo. Nos sinais dos teus hábitos domésticos, encontrei aqueles que adotei para mim e os que transmiti a você nos anos em que estivemos juntos. Na sua atual narrativa, li sinais da nossa história passada que fazem hoje também parte da minha própria vida. Essa coabitação entre diferentes tempos em um mesmo espaço prova que os eventos que narramos, quando fora dessa cronologia linear, seguem em constante transformação e reatualização. É isso, afinal, que fazemos nós, pessoas que contam histórias, ao chegar ao fim: nós continuamos. Obrigado por me lembrar disso. Embrulho esse suvenir com cuidado e coloco-o também na minha mala de viagem – minha cesta – para trazê-lo de volta comigo. Vou até a varanda da residência de Ruy Belo e observo mais uma vez os telhados de Óbidos circundados pelos muros centenários. Avisto as viajantes que caminham pelas ruelas da vila, cada uma com sua própria bolsa, sua bagagem pessoal e coletiva de histórias, e sinto chegando a familiar combinação de nostalgia e expectativa que sempre vem ao fim de uma boa viagem.

Com carinho,
de Portugal,
Gabriel

Diário de Portugal #7

Óbidos. 8 abril 2024.

Burizin,

Você reclama que não sabe mais da minha vida, que minhas novidades chegam a você só através de outras pessoas. Essa carta-diário é, portanto, para ti, para que fique sabendo dos meus dias:

Segunda-feira, dia 1º

Primeiro dia em Óbidos. Sentado em um quiosque na única praça, tomando um vinho e escrevendo sobre a mesa bamba (duas razões para a péssima caligrafia). A vila tem o charme característico dos sítios medievais. Lembra-me muito Mértola – que visitei na minha última vinda a Portugal –, no entanto parece-me ainda menor e a quantidade de turistas é imensamente superior. As duas únicas vias principais estão atabalhoadas de gente e logo começo a me incomodar, como se não fosse eu também um visitante. A casa é confortável. Trago as minhas malas do carro, vou ao mercado. Carregando as bagagens e as sacolas de compras, atraio alguns olhares. Sou uma figura um tanto atípica neste cenário temporário. A maioria das pessoas passa apenas algumas horas dentro das muralhas. Mesmo aquelas que trabalham aqui, como Elma, funcionária do município que me recebe, não moram dentro da vila. Elma me conta que aqui dentro há apenas 20 habitantes, quase todos idosos. Eu sou o 21º. A população de visitantes, no entanto, faz sentir sua presença. Todas as casas aqui são pintadas de branco exceto por uma faixa colorida na parte inferior e nas quinas, cada cor com seu próprio significado: cinza para as construções religiosas, azul para os edifícios públicos, vermelho para os de famílias historicamente mais abastadas e amarelo para os restantes. Com o intuito de proteger o patrimônio histórico, a tinta usada é um pigmento orgânico que mancha facilmente, e com o tempo os visitantes de Óbidos passaram a “pintar” as paredes brancas de azul com os dedos. Diversos nomes e corações estampam as casas pela vila em um aparente desejo de deixar alguma marca neste sítio secular. Suponho que haja um pouco deste mesmo desejo em minha decisão de fazer uma residência aqui, uma vontade de deixar alguma marca. Sento-me no canto mais afastado do café e duas mulheres vem se sentar próximas de mim. Não consigo identificar seu idioma, imagino que seja alguma língua eslava. Tento começar a ler “O ano da morte de Ricardo Reis”, mas não consigo. Trouxe também todos os meus antigos cadernos, na expectativa de que a viagem seja de alguma forma uma visita ao passado. Impossível não se sentir tentado a olhar para trás em um lugar como este. No caminho distraído de volta para casa, sou abordado por um senhor que me pergunta se preciso de direções. Seu Carlos mora aqui há 35 anos, em uma das ruas externas adjacentes aos muros da vila. Ele me diz que já foi ao Rio de Janeiro, ao Recife, à Olinda e a Porto de Galinhas, mas que seu lugar preferido no Brasil é São Salvador da Bahia. Pede desculpas porque, segundo ele, quando os velhos de Óbidos encontram um jovem que lhes dê atenção, às vezes falam um tanto demais. Com orgulho, conta-me do filho que foi estudar música em Viena e hoje mora em Berlim, onde ele e a esposa irão visitá-lo na semana que vem. Nos despedimos e dissemos até logo, sem que ele deixe de me advertir para a possibilidade de que não se lembre do meu nome da próxima vem que nos encontrarmos. Estou chegando aos 80, ele explica.  

Terça-feira, dia 2

Ricardo Reis chama o hotel em que se hospeda assim que chega à Lisboa de um “lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa”. É assim também para mim a residência de Ruy Belo. O site do município de Óbidos diz que se acredita que a vila tenha sido edificada pelos Celtas em 308 antes de Cristo. Imagino que se refiram ao castelo e suas muralhas, mas as outras construções não devem ser muito menos antigas. Como Ricardo, venho a Portugal sem nenhum negócio específico a tratar. As pessoas me perguntam se estou aqui a lazer ou a trabalho e não sei bem o que responder. Escrever não me parece que se encaixa em nenhuma dessas opções.

A casa de Ruy Belo é uma construção antiga, relativamente pequena e aconchegante. Há uma sala-cozinha e um quarto no primeiro andar, e no segundo mais dois quartos, um de dormir e outro usado como escritório, de onde é possível acessar uma pequena varanda que tem vista para o castelo. Escrevo neste cômodo, onde há também uma pequena janela de onde, quando sentado à mesa, só consigo enxergar o céu. Não conhecia Ruy Belo antes de vir para cá. Todos os quartos estão repletos de livros que eram seus e que sua família doou para o programa de residência de Óbidos. Ao lado da porta de entrada da casa, há uma pequena placa de acrílico com seu nome indicando que aquela é uma residência literária. A plaquinha gera certa curiosidade nos visitantes, que volta e meia param em frente à casa para tirar uma foto, sem suspeitar que há alguém hospedado aqui. Hoje de manhã, ao ouvir algumas vozes do lado de fora, aproximei-me da pequena janela que há na porta de entrada e dei de cara com uma senhora japonesa que quase caiu para trás. Abri a porta e a cumprimentei, perguntando de onde era e contando o que eu fazia ali. Deve ter pensado que eu era um espírito ou algo ainda mais insólito: um escritor.

Quarta-feira, dia 3

Termino de ler meus cadernos dos últimos anos hoje de manhã e me vem aquela mesma surpresa de descobrir, sempre como se pela primeira vez, a imensa quantidade de vidas que cabem numa mesma pessoa. Decido ir conhecer a Lagoa de Óbidos para aproveitar o dia ensolarado. Almoço um prato de amêijoas em um restaurante à beira d’água. Depois paro o carro em uma estradinha de terra no meio do mato e vou caminhando até uma pequena praia isolada. Em um outro ponto distante da margem, avisto um pescador. Somos só ele e eu. Tiro os sapatos e a camisa e deito-me na areia. Percebo que é a primeira vez em 45 dias que sinto o sol no peito, na barriga. É um calor raro este que esquenta a minha pele, uma sensação preciosa. De lá, sigo para a praia de Bom Sucesso, em um dos lados do canal que conecta a lagoa ao mar. A lagoa de Óbidos é, na verdade, uma laguna, uma depressão geográfica de pouca profundidade separada do mar por uma barreira natural feita de dunas, através das quais a água salgada flui rasa e gelada. É um corpo d’água, feito o meu. Há uma grande falésia em um dos lados da praia da qual não se pode chegar muito perto por risco de desabamentos. Busco na areia uma pequena pedra branca e guardo-a no meu bolso. Caminho até o mar, subo a barra das calças e deixo que ondas absorvam os meus pés magros. Enfim sinto saudade de casa.

Quinta-feira, dia 4

O fim da viagem se aproxima. É curioso que essa residência se dê no final das 8 semanas em Portugal. A palavra residência traz uma sensação de permanência que não se encaixa com a natureza temporária do período que passei aqui, ainda mais agora, quando mais um fim se aproxima. Estou muito consciente da minha atual condição de passante. A grande quantidade de livros e histórias sob esse teto me lembram de que sou apenas mais um capítulo. Na semana passada, escrevi sobre os fins e os começos e sobre o quanto eles têm me atraído. Suspeito que seja disso que vá tratar o próximo livro. Digo “suspeito” porque para mim, por mais concretas as hipóteses que tenho sobre o romance, sinto-me, na maior parte do tempo, trabalhando vendado. A escrita é um jogo de tatear, de apalpar delicadamente o escuro. Me perguntaram o que eu poderia fazer com uma residência literária de apenas duas semanas, como se esse fosse um tempo insignificante dentro da vagarosa empreitada que é escrever um livro. É de fato muito pouco tempo, mesmo que aqui o tempo pareça passar um pouco mais devagar, os sinos da igreja soando a cada quarto de hora. Também não estou tão acostumado a passar muitas horas seguidas escrevendo. Manuseio o texto com certa cautela e parcimônia, não por nenhum preciosismo com a palavra, mas por conta do seu peso e temperatura, que ainda não consigo sustentar por muito tempo. Imaginei que essa temporada em Portugal me faria encontrar novas entradas e saídas para o labirinto narrativo onde me encontro, que passaria noites em claro na casa de Ruy Belo a tecer minha trama. Na verdade, sigo perdido. E, ainda assim, este foi um dos períodos da minha vida em que mais li e escrevi, em que passei mais tempo pensando sobre e registrando minha própria metodologia. Foi renunciando ao desejo de encontrar a história que se abriu para mim a janela do processo, esse que, pelo menos no meu caso, mistura tudo que se dá na vida à ficção. Na verdade, as cartas-diários são também a história, são também linhas do livro, mesmo que nunca apareçam nele. Elas me lembraram de habitar a escrita fora da lógica da utilidade. A escrita como exercício de investigação sem promessas, como viagem sem destino. Como a mão que avança inquisitiva pelo breu até ir de encontro ao toque, até achar, numa praia distante, uma pequena pedra que possa levar de volta para casa.

Sexta-feira, dia 5

O fim da viagem se aproxima. Esta é a frase que segue ecoando. Retorno ao Brasil em alguns dias e me volta à cabeça a mensagem que J me enviou em primeiro dia em Portugal: “aguardo aqui por tudo que você vai me ensinar quando voltar, mesmo que da viagem nunca se volte.” Pergunto-me se é mesmo impossível a volta. O fim da viagem se aproxima, mas se os finais foram colocados em xeque talvez esse que se aproxima seja outro fim, o fim como finalidade, como intenção. Como aquilo que se busca, conscientemente ou não. Acho que esse fim acomoda uma volta que não é completa, que não se pretende inalterada. Uma volta que é em si uma nova chegada, um convite a trazer os olhos da viagem para o lugar habitual da partida. Acho que é isso que J quis dizer quando disse que da viagem nunca se volta. Há algo nosso que fica, alguma fração do olhar que resta e que continuamos a acessar mesmo à distância. É assim na viagem como na escrita.

Com carinho,
Gabriel

Diário de Portugal #6

Lisboa. 31 março 2024.

Meu bem bem,

Começo aqui mais uma carta-diário. Escrevo essa frase e me levanto. Vou preparar um chá, cortar as unhas, esvaziar o tanque do desumificador da sala. O documento do Word me diz que a palavra “desumificador” não existe, então eu adiciono-a ao dicionário do meu computador. Satisfaço todas as pequenas distrações com indulgência, são 8 da manhã do domingo de Páscoa, há pela frente ainda muito tempo para chegar ao fim de mais esse texto e, chegando a tal fim, desfrutar da sensação de completude. Passo então os dois ou três dias seguintes sossegado, até que aos poucos volta a me habitar a pergunta tão familiar de todas essas últimas semanas: como começar (mais uma vez)? Não me passa despercebida a ironia desse ciclo: A despeito de qualquer ímpeto triunfal que vem com o aparente desfecho, o que de fato move a palavra é o retorno à página em branco. Como começar?

Essa é uma pergunta que habitamos juntas por um tempo recentemente. Entre outubro e dezembro do ano passado, passamos algumas semanas procurando uma resposta enquanto escrevíamos e encenávamos uma dramaturgia para nosso grupo teatral (por falta de melhor nome). Éramos 14 pessoas, todas ali, em primeiro lugar, pelo desejo de trabalhar juntas e de se exercitar, de praticar, sem nenhuma certeza a não ser a vontade comum de desenvolver algo a partir de um texto concreto, um texto “completo”. Fomos levadas por uma tendência metaficcional (o Word também não conhece a metaficção, adiciono ao dicionário) e a dificuldade de encontrar um tema comum a todas nós acabou por se tornar a matéria em si da nossa pesquisa, traduzindo-se naquela mesma pergunta: como começar? Depois de experimentar diversas respostas, M e eu então propusemos uma dramaturgia escrita a quatro mãos, uma costura de dois trabalhos nossos, diferentes em estilo e forma, mas guiados pela mesma investigação a respeito do fim de uma relação amorosa, esse evento que parecia também circundar o imaginário de todo o grupo há tempos. Naturalmente incluímos no texto final nossa dificuldade em encontrar um começo para aquela história a ser contada. Na primeira cena, com todas as atrizes presentes no espaço, indagávamos umas às outras sobre a melhor forma de se iniciar uma peça (um texto, um relacionamento) e descambávamos para um bate-boca acalorado em que algumas de nós defendia a validez daquele autoquestionamento enquanto outras taxavam-no de cafona e preguiçoso (usando ainda aquele mesmo recurso dramatúrgico de trazer para dentro do texto um receio que nos assombrava fora dele). Recordo aqui esses detalhes por acreditar ser importante, como criador, fazer esse exercício de memória acerca do processo de um trabalho independente de seu resultado, mas também porque talvez ali encontrem-se algumas lições possíveis para esse momento de agora. Fizemos uma abertura de processo daquele trabalho, montando uma versão possível da dramaturgia e apresentando-a para algumas amigas em dezembro, sem, no entanto, retomá-la desde então. Talvez voltemos a visitá-la em breve, talvez não, mas nem por isso aquele foi o seu fim. Se estou aqui sentado a pensar no que vivemos juntas, nas inúmeras maneiras que imaginamos de se iniciar o relato do fim de um amor, é porque aquele começo segue reverberando fora do meu controle, no presente e além.

Comentando uma das cartas-diários passadas, uma amiga me lembrou do conceito de começo-meio-começo de Nêgo Bispo, por meio do qual o autor, deparado com a questão de como definir ou dimensionar o tempo, faz um contraponto à noção cristã-ocidental de desenvolvimento e finalidade. Trago aqui um trecho de seu livro “Colonização, Quilombos: Modos e Significados” que pode nos ajudar a pensar:

Como já falamos, faz-se por bem entendermos que as populações desenvolvem sua cosmovisão a partir da sua religiosidade e é a partir dessa cosmovisão que constroem as suas várias maneiras de viver, ver e sentir a vida.
O povo eurocristão monoteísta, por ter um Deus onipotente, onisciente e onipresente, portanto único, inatingível, desterritorializado, acima de tudo e de todos, tende a se organizar de maneira exclusivista, vertical e/ou linear. Isso pelo fato de ao tentarem ver o seu Deus, olharem apenas em uma única direção. (…)
Quanto aos povos pagãos politeístas que cultuam várias deusas e deuses pluripotentes, pluricientes e pluripresentes, materializados através dos elementos da natureza que formam o universo, é dizer, por terem deusas e deuses territorializados, tendem a se organizar de forma circular e/ou horizontal, porque conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas as direções.

Nêgo Bispo parte dessa idea para traçar um panorama histórico de como se formou e desenvolveu a sociedade brasileira a partir da invasão dos colonizadores europeus e do extermímio e escravização dos povos afro-pindorâmicos1. Sabemos que esse processo resultou, nas palavras do autor, em uma acelarada “degradação e expropriação territorial seguida da conformação de grandes latifúndios voltados à monocultura de exportação, a urbanização e a industrialização desenfreados”, que caracterizou o desenvolvimento da economia capitalista no Brasil e se intensificou desde a Ditadura de Getúlio Vargas até o atual chamado Estado Democrático de Direito. É essa cosmovisão – essa forma de ver e entender o mundo – que segue informando nossa relação exploratória com a natureza, com outras pessoas e também com nosso processo criativo (logo, meu anseio pela conclusão e por um fim absoluto). É essa lógica linear do progresso que orientou meus próprios antepassados que por vezes me impede de fazer refluxos (outra imagem que encontrei no livro de Nêgo Bispo). No entanto, só pelo refluxo é que podemos retornar ao começo e à imensidão de possibilidades que esse gesto carrega.

Por sorte, temos as amigas que não falham em nos lembrar que há outras formas de se elaborar o pensamento e de se experienciar a vida. A noção de começo-meio-começo me ajuda a perceber que enquanto tentávamos encontrar uma maneira possível de narrar o fim de um amor, escrevíamos mais um começo para a nossa própria história de trabalho e amizade. Distraídas pela nossa obsessão em representar o término de um relaciomanto amoroso – certamente também influenciada por nossa visão judaicocristã que privilegia esse tipo de estrutura familiar como única forma de vida –, deixamos de nos lembrar que o que fazíamos era também um ato político em uma outra direção, voltada para uma vida compartilhada entre amigas. Evidente que terá de ser constante o esforço em tentar enxergar além dos limites que historicamente impusemos a nos mesmas e que reproduzimos sistematicamente. Mas com vocês tudo parece um pouco mais possível.

Encerro aqui mais uma carta-diário. Abriu o sol nos telhados molhados de Lisboa. Adianto o relógio uma hora, hoje é o primeiro dia do horário de verão no hemisfério norte (aqui também chamado “hora de verão”). É o início da primavera, mais uma. Pequenas folhas verde-claras despontam nos galhos esturricados e milhares de margaridas passam a cobrir os gramados. Vou ao parque agora à tarde tirar uma foto para você ver. Sei que iria gostar. Amanhã sigo para Óbidos, para mais um começo.

Com carinho,
Gabriel

  1. Pindorama é a expressão tupi-guarani para designar todas as regiões e territórios da hoje chamada América do Sul. ↩︎

Diário de Portugal #5

Lisboa. 25 março 2024.

Amore,

Segunda-feira. Última semana em Lisboa antes da ida para Óbidos. Chegam do Brasil notícias da vida acontecendo a pessoas queridas, casamentos e filhos, novos trabalhos e outras boas mudanças. Sinto-me distante, de todos e de seus acontecimentos. Comento contigo que às vezes parece que tudo se dá de uma vez só, a despeito de nós. Você tem a mesma impressão.

Aqui, vou almoçar com um casal de amigos. Dirijo até sua nova casa, a meia hora de Lisboa. Os dois sendo arquitetos, desenharam eles mesmos os próprios móveis, incluindo uma imensa estante de madeira clara que envolve duas das quatro paredes da sala, emoldurando também a passagem de entrada do cômodo onde penduraram uma cortina vermelha que dá um ar teatral a nossa cena: além de mim, mais alguns amigos próximos, sentados todos à mesa, comendo a comida que nos foi preparada, lembrando de anedotas passadas e comentando as diferenças no uso do português.

Ela espera um bebê. Eles abrem os presentes trazidos por cada uma de nós, pequenos macacões (um verde, um rosa) que ela segura no ar com as mãos como se fosse a criança e depois dobra sobre a própria barriga. Ele a observa com um sorriso no rosto ao mesmo tempo radiante e impenetrável. Radiante porque esta é a vida que ele desenhou, materializando-se diante dos próprios olhos como a estante projetada para a sala. Impenetrável porque por mais que esse sentimento seja reconhecível, ele não é passível de reprodução.

Me fizeram recentemente a seguinte pergunta: O quê que não dá para ser dito com palavras? Respondi que não sabia. Tudo, afinal, pode ser dito com as palavras. Tudo a não ser talvez a certeza, a tradução exata da experiência. Posso te falar daquele sorriso, da expectativa de todo um futuro condensado em uma tarde, da surpresa recorrente de se perceber pai, do assombro e mistério que gravam esses momentos singelos na memória. Posso te falar que aquele sorriso carregava não só a antecipação de seu portador, mas também a minha, a de todos nós ali reunidos e, de alguma forma, a do mundo inteiro, num misto estranho de estima e orgulho que se manifesta quase que por instinto quando juntos compartilhamos a possibilidade de continuação. Posso te falar disso tudo e você na certa irá me entender, mas não seria capaz de conjurar aquele sorriso aqui, em palavras, para você. Aquele sorriso existiu ali e ali apenas e é essa fugacidade que nos impele a escrever.

Isso não quer dizer necessariamente que escrevemos porque a vida não basta (como defendeu famosamente Ferreira Gullar). Propondo um contraponto à ideia do poeta, a amiga Juliana Leite um dia nos disse que escrevemos justamente porque a vida é muitas vezes demais. Diante de todas as possíveis razões, permanece a pergunta: Por que escrevemos?

 Lendo a “Devoção” de Patti Smith essa semana, encontro sua sugestão: Because we cannot simply live. À primeira vista, pode parecer que aqui também vem de uma sensação de escassez a motivação da artista para seguir recorrendo à caneta e folha em branco. Mas talvez não seja bem isso. Para Patti (e possivelmente também para Ferreira Gullar), talvez seja inconcebível ‘apenas viver’ porque existe a ficção (que prefiro usar ao invés de “arte”). Escrevemos porque só assim nos é possível tentar acomodar a realidade, porque nos é inegociável a chance de questioná-la e reimaginá-la, de buscar além de seus limites algum sentido (direção/rota) quando dentro dela já não se encontra, de reconfigurar suas forças e assim lembrá-la de algo que ela esqueceu ou quis esquecer sobre si mesma (como sugere Diogo Liberano).

Há ainda um tanto que gostaria de lhe dizer e lhe perguntar sobre a ficção, mas hoje esse é todo o tempo que eu tenho (a realidade às vezes também irrompe nos limites do texto). Te mando junto desses parágrafos meu desejo de que corra tudo bem amanhã e de que em breve sejamos nós a mandar boas notícias para o mundo.

Com amor,

Gabriel

Diário de Portugal #4

Lisboa. 18 março 2024.

Friend,

Ontem meu pai fez 68 anos. Depois que passei dos 30, tenho a impressão de que se tornou mais possível imaginar a mim mesmo nestas idades antes ainda mais distantes. Sempre tive o hábito de fazer esse exercício, tentar fabricar uma imagem minha no futuro. Se me ativesse mais ao presente, talvez de fato fosse uma pessoa menos inquieta e ansiosa (como dizem que acontece), mas futuro e passado me ocupam tanto quanto – se não mais – o agora. E mesmo que muitas vezes me atormente essa mania errante da minha imaginação, a verdade é que não sei se seria capaz de viver de outra forma. A preocupação com a passagem do tempo é algo que me constitui e que norteia minha curiosidade na vida. Certamente minha relação com essa força que rege todas nós – o tempo – será outra se e quando chegar a minha vez de fazer 68 anos. Ou talvez eu descubra, para minha surpresa, que não terei mudado tanto quanto esperava e que, apesar de habitando um outro corpo, meus anseios terão permanecido relativamente ilesos. Desta última hipótese duvido bastante, mas por que temos tanta certeza da mudança?

Busco uma fotografia do meu pai enquanto jovem, ele na beira de um rio, vestindo um minúsculo short e regata, com um bucket hat na cabeça e uma câmera na mão. Ele sorri de olhos fechados, deve ter vinte e poucos anos, deve ser um pouco mais jovem que eu. Mando a fotografia para ele. Ao contrário das minhas tentativas de me imaginar na distância do futuro, ele provavelmente consegue se reconhecer neste momento remoto e sentir no próprio corpo a densidade dos anos. Suponho que seja esse um dos privilégios de envelhecer. Em compensação, à medida que a vastidão de seu passado aumenta, limita-se cada vez mais o espaço de seu futuro. Apesar das diferenças entre nossos atuais pontos de vista, viver seguirá sendo difícil. No entanto, me pergunto se para ele, de onde está, aparecem um pouco mais claras as mudanças pelas quais passou durante sua vida. Talvez pouco do jovem sorridente da fotografia ressoe nele hoje. Talvez, do topo de sua idade, ele enxergue sua vida de maneira episódica, identificando suas muitas versões e os períodos de transição de uma para outra. Ou talvez ele observe seu tempo na Terra de forma mais linear, sua essência permanecendo inalterada através de todas as sinuosidades vividas. Ainda não tive a chance de perguntar a ele de qual dessas duas perspectivas ele se sente mais próximo. Resolvi deixá-lo aproveitar o aniversário em paz.

Foi um artigo de Joshua Rothman na The New Yorker que li esta manhã (“Becoming you”, de outubro de 2022) que me provocou esses questionamentos. Nele, Joshua coloca-nos a pergunta: Com o passar do tempo, permanecemos as mesmas ou aquelas que somos mudam substancialmente? Acho que consigo te ouvir dizendo que todas as pessoas se alteram de forma profunda através dos anos e das muitas experiências que as moldam, mas não acho que essa seja a única resposta. Não sei se meu pai, mirando o jovem da foto, não reconhece um tanto de si mesmo que resta com ele até hoje, aos seus 68 anos. É, certamente, uma questão subjetiva que pertence apenas a cada uma de nós e que será sempre atravessada também pelas circunstâncias nas quais estamos inseridas. Ainda assim, te escrevo sobre isso hoje por duvidar que seja possível exercer sozinho (pelo menos para mim, por enquanto) tal discernimento. Sou capaz de perceber, intelectualmente, as muitas transformações que vivi, em especial nos últimos anos. Mas daqui de onde te envio esta carta-diário, sinto-me impulsionado por uma linha que me conecta diretamente com todos aqueles que já fui, uma linha que atravessa todas as minhas decisões, meus arrependimentos, minhas correções de rota. Uma linha que me impede de dizer simplesmente que sim, as pessoas mudam. Quando releio meus diários, tenho dificuldade de ouvir a mim mesmo como autor daquelas palavras. No entanto, muitas das inquietações guardadas naquelas páginas me perseguem até hoje, mesmo aqui, em Lisboa, passadas as primeiras semanas de encantamento com a viagem. Não vejo nisto evidência de que minha personalidade não se desenvolveu e sei que você concordaria, portanto não consigo deixar de acreditar também que algo em nós se mantém (talvez, em especial, as partes que mais nos incomodam e também aquelas que mais valorizamos). Você que me conhece há tanto tempo com certeza lembra de outras versões minhas, sem que deixe de reconhecer, a cada vez que me encontra, aquele mesmo Gabriel que há tantos anos cruzou por acaso o seu caminho no inverno inglês de Salisbury.

Acho que essa minha inclinação à ideia de continuidade vem do meu interesse, em particular, pela auto-narração. Segundo Rothman, quem adota o costume de narrar a si mesmo pode acabar por entrar em um ciclo auto-realizável, em que aos poucos vamos sincronizando nossa vida com a história que escrevemos e revisamos. (Isso passa, inclusive, pela concepção de ficção que mais me interessa: a ficção não como o oposto da realidade, mas como seu complemento, como seu dispositivo de reconfiguração.) Apesar de me sentir atraído por histórias que suspendem as noções de causalidade e totalidade, parece também haver em mim algo que busca instintivamente os pontos conectados por uma história. Não quero dizer que acredito que isso seja algo que se encontre. Quanto mais tento me aproximar das ideias de começo e fim (ideias que venho buscando compulsivamente nos últimos muitos meses), mais me sinto perdido no meio de tudo. Nessas horas encontro algum consolo em Sarah Manguso, que tentando dar a ver aquilo que por muitos anos a fez manter um diário, conclui que são justamente os meios (mais do que os começos e finais) que sustentam a força do nosso desejo e seguem movendo o sempre que está constantemente acontecendo (não à toda seu livro chama-se Ongoingness).

Constâncias e impermanências à parte, o importante é seguir sendo si mesmo, e pelo sucesso desse desafiador empreendimento devo um tanto a você. É a partir do testemunho das amigas que seguem nos acompanhando pelas tortuosidades da vida, pelas inesperadas e por vezes incoerentes mudanças, que podemos sempre tentar voltar a nós mesmas, mesmo quando esse caminho de volta já não está tão evidente. Depois que passei dos 30, tenho tentado cultivar e proteger ainda mais esse tipo especial de vínculo, aquele ao qual nos enlaçamos para poder arriscar nos perder. Só assim, acredito, é possível afirmar que independente de quem fomos ou de quem nos tornaremos, seguimos investidas na busca.

Com carinho,

Gabriel

Diário de Portugal #3

Lisboa. 11 março 2024.

Beibi,

Há no quinto andar do Centre Pompidou, em Paris, um quadro do pintor francês Yves Klein intitulado IKB 3, Monochrome bleu. É uma tela de dois metros por um e meio, suspensa no meio da parede branca da galeria, protegida por uma caixa de acrílico transparente. O quadro é inteiramente pintado do azul inventado por Klein (International Klein Blue – IKB), um azul escuro, denso e aveludado. A primeira vez que vi uma obra de Klein foi há alguns anos. Na época, eu desconhecia a história do pintor e sua cor, portanto o que senti foi genuinamente uma resposta direta do meu corpo ao azul, a mesma sensação que agora sempre tenho quando encaro uma dessas telas: há uma suave expansão do meu corpo, uma dilatação dos meus órgãos sensoriais que instantaneamente aguça minha atenção, como se um feche de luz se abrisse no espaço e absorvesse de repente o meu foco. Sinto-me, de certa forma, hipnotizado, ou seja, numa mistura ambivalente de profundo relaxamento, intenso alerta e inevitável vulnerabilidade. É desconcertante. Desde então, sempre tive certa curiosidade por Klein e seu azul, essa cor elusiva que aliciou tantos artistas. Gosto muito de um texto de Dorrit Harazim em que ela relaciona o azul ao desejo e a sua intransponível distância. O azul, essa cor que é tão presente em nosso imaginário e que ainda assim é sempre uma ilusão: no céu, no mar, nos raros seres que a ostentam, devemos esta cor quase sempre a fenômenos de absorção/dispersão/refração no comprimento das ondas de luz, já que quase não há, na natureza, a ocorrência deste pigmento. No texto, Harazim cita a ensaísta norte-americana Rebecca Solnit, que em seu livro “Um guia para se perder” escreveu:

“Há muitos anos que me emociono com o azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica entre você e as montanhas.”

Talvez seja por isso que Klein passou a vida perseguindo seu azul e que seu azul me persegue sempre que estou em sua presença. Não sei muito sobre Yves Klein para além do que ele me faz sentir, mas me parece que há nessa obsessão pela procura do “azul verdadeiro” uma intenção de nos convidar a renunciar, mesmo que temporariamente, a nossas existências corpóreas como as conhecemos e a nos impregnar do imaterial, do irrepresentável, desta cor impossível, para que possamos tentar sentir a partir dela. Não à toa Klein pensava também através da performance (alguns de seus trabalhos com a tinta incluíam o “uso” controverso de mulheres nuas e seus corpos como “pincéis”). Neste seu interesse pela criação de um outro estado de sensibilidade parece haver algo fundamental também a esta arte tão intrigante que tem como matéria-prima as circunstâncias.

Em Lisboa, vi alguns dias atrás uma fala da artista e professora brasileira Eleonora Fabião (falei dela para você). Era o dia de seu aniversário, 29 de fevereiro, esse dia que quase nunca acontece. Ela agradeceu, emocionada, por aquela sala repleta de pessoas (incluindo seu companheiro e sua filha) e por ter a oportunidade de celebrar aquela data falando de seu trabalho (de sua vida). O pouco que conhecia dela e de sua prática chegou até mim através de amigas que tem por ela grande admiração, e logo entendi o porquê. Eleonora produz o mesmo fascínio que Klein com a própria presença. Fala e preenche o espaço de maneira precisa e ágil sem, no entanto, deixar de ser atenciosa com aquelas que a escutam. Falou de alguns elementos essenciais de sua pesquisa e de seu trabalho atualmente em curso, e por fim separou algum tempo para aquilo em que parecia estar mais interessada – a conversa (citando William Pope.L: “Artistas não fazem arte, eles fazem conversas.”). Saí de lá transfixado por uma ideia: e se esta viagem e estes diários-cartas fossem eles também um programa performativo?  

Ao final de cada uma das semanas que passarei em Portugal (seis em Lisboa e duas em Óbidos), escreverei uma carta-diária endereçada a uma amiga (diferente a cada semana) a partir das vivências durante a viagem. As cartas-diários serão também publicadas semanalmente no meu site. Cada uma das cartas deverá ficar pronta, no máximo, ao final do dia na segunda-feira.

Foi este o enunciado que naturalmente me propus (e que só agora escrevo) ao chegar aqui. Uma ação estipulada a ser realizada “sem ensaio prévio”. É esta ação a ser cumprida que vem possibilitando, norteando e movendo minhas experiências durante esses dias. Não saio às ruas em busca daquilo sobre o que possa escrever, mas é o gesto de, a cada semana, sentar junto ao computador em frente à janela e tentar pensar sobre aquilo que experimento que tem cultivado em mim, como imagina Eleonora, um estado de corpo-em-experiência. Neste estado buscado pela artista, renunciamos “ao torpor da aderência e do pertencimento passivos” em nome da desarticulação dos processos ditos “naturais”, em uma – importante salientar – prática que ela relaciona com a noção de Corpo-sem-Orgãos (portanto, des-organizado) de Deleuze e Guattari. É através da proposital mudança de minhas “circunstâncias” (geográficas, mas também sensoriais e psicofísicas) que tenho buscado a sustentação deste estado mais atento, mais poroso. É um estado (ou um sentir-a-si-mesmo, como escrevi na última carta) que é pautado, como defende o dramaturgo Diogo Liberano, não pela lógica da produtividade, mas pelo padecimento de paixões, pela vontade de “levar o corpo para passear”, pela crença de que “escrever não é uma prática do saber, mas uma prática do dispor-se a”. Essas conexões que surgem a cada vez que sento para escrever se apresentam quase que, para usar livremente uma palavra de Fabião, por mágica. É dessa mágica que parecem também surgir, durante essa minha breve visita à Paris, a apresentação de Renato Linhares no Centquatre em que o performer patina (sobre rodas) pelo espaço de uma sala vazia manuseando imensos – não há melhor palavra – seres plásticos, numa dança hipnotizante que dá vida ao inorgânico. Ou ainda a performance da atriz Clotilde Hesme no papel de Hamlet na adaptação da diretora Christiane Jatahy, que encarando a platéia lotada do Odéon, disse em francês as palavras escritas por Sheakspeare há 400 anos. Sentado na segunda fileira, decidi por um instante abrir mão de tentar apreender o sentido do que ela dizia e pude enxergar, nos seus marejados olhos azuis, nós mesmos, todos nós em absoluta mudez, imóveis no escuro, nas poltronas de veludo vermelho e pelos balcões dourados, incapazes de respirar até ouvirmos, em sua assombrada voz, Le reste est silence.

É neste estado que pretendo seguir realizando esta ação, que apesar de aparentemente simples, tem me causado um espantoso desarranjo (bem aquilo de que precisava). Fica aqui então para você, beibi, como oferta ou presente, um programa que espero, caso decida realizá-lo, te traga a oportunidade de ir ao encontro de algo inesperado:

Em um sábado de manhã quando haja sol, sairei de casa e caminharei pelas ruas do meu bairro. Durante todo o percurso, escutarei através dos melhores fones de ouvido que estiverem a minha disposição a faixa “Siebengesang”, de Hans Otte. Não seguirei nenhum trajeto específico, deixando-me levar apenas pela intuição. Não tirarei os fones de ouvido até o final da música, mesmo que seja interpelada por alguma pessoa. Ao final da música, sentarei no primeiro café que encontrar e escreverei, em um caderno, aquilo que meu corpo pedir.

Com carinho e saudades,

Gabriel

Diário de Portugal #2

Lisboa. 4 março 2024.

Buri,

Quando enviei uma carta-diário para J na semana passada, decidi que as próximas entradas (este continua sendo um diário, mesmo que feito de cartas) seriam destinadas a amigas que amo e que hoje estão longe. Esta é para você.

Fiquei pensando esses últimos dias na curiosa tentativa de se estabelecer uma rotina em um lugar estranho. Criatura de hábitos que sempre fui, basta passar uma noite em qualquer nova cidade para que já comece a fabricar costumes. Desfaço a mala o quanto antes, familiarizo-me com os armários da casa, entendo a nova ordem doméstica. Aí então escolho as melhores rotas pelo bairro, elejo um supermercado, minha academia, averiguo as normas e termos locais e vou aos poucos criando minhas novas tradições. Imagino que isso possa te parecer excessivamente ordeiro e talvez até compulsivo, mas há pra mim um tanto de conforto na constância. É nesses singelos novos rituais que vou me resgatando em meio ao desconhecido. Sei que posso estar me contradizendo, uma vez que já afirmei o quanto me interessa o não-saber nesta temporada que estou passando aqui. Mas há de se encontrar, para a saúde de um capricorniano inveterado, uma dose mínima de estabilidade.

Não por acaso uso essas palavras – resgatar/estabilidade. Da janela em frente à qual escrevo avisto um imenso guindaste, uma grua amarela que passa os dias girando em seu próprio eixo de um lado para o outro. Desde meu primeiro dia aqui essas estruturas se tornaram um elemento constante do meu novo cotidiano. Elas estão por toda a cidade, resultado da especulação imobiliária desenfreada dos últimos anos que tornou Lisboa uma das cidades mais inviáveis para se viver na Europa (os custos dos aluguéis sobem sem que os salários locais os acompanhem, fazendo com que a maioria dos portugueses se retirem para novos distritos enquanto os imóveis na cidade concentram-se na mãos de expatriados cuja renda vem de outros países, ou convertem-se em estâncias de locação por temporada). É também possível que essa omnipresença dos guindastes seja uma ocorrência do fenômeno Baader-Meinhof, aquela tendência cognitiva que afeta a maneira como percebemos o mundo e cria uma ilusão de frequência que nos faz acreditar que alguma coisa (um objeto, uma palavra, um conceito) fica aparecendo para nós de novo e de novo. A medida que criamos essa hipótese (os guindastes estão querendo me dizer alguma coisa), nossa atenção volta-se ainda mais para o estímulo em questão e passamos a encontrar as mesmas evidências por todo canto, num ciclo auto-confirmativo e vicioso. Entre as possíveis explicações que fabrico:

  1. As gruas são símbolos que complementam meus sonhos recentes em que sou soterrado por uma avalanche, de dentro da qual, talvez, serei içado;
  2. São uma representação da minha mãe, cuja cor favorita era o mesmo amarelo do ferro dessas estruturas;
  3. Guardam algo do mistério da relação entre peso e leveza (mistério que restou comigo desde que li Richard Serra recordando-se do dia em sua infância quando encontrou sua matéria-prima), justo essas estruturas cujo braço vertical em espanhol chama-se – veja – pluma.

E através de todas essas suposições, deslizo pelos trilhos da memória até uma fala de George Perec (cuja transcrição foi posteriormente publicada no livro Je suis né) sobre a época de sua vida em que ele servia no exército francês como paraquedista. Perec não chegou a ser enviado para lutar na Argélia (além de se opor ao conflito, foi no fim das contas dispensado pois seu pai havia morrido em combate em 1940), mas como recruta completou 13 saltos em treinamento. Ele conta que apesar de repetir a ação diversas vezes, pensava sempre em desistir até o último momento (mesmo sabendo que naquele contexto isso não seria possível), o instante derradeiro em que ele, já aberta a porta do avião, encarava os 400 metros à sua frente, ou seja, o vazio. Naquele instante, em que cada célula no seu corpo ordenava que ele desse meia-volta e retornasse ao seu assento, em que todas as fibras dos seus músculos petrificavam-se, naquele instante, ele afirmava, era preciso ter confiança. Confiança de que, a cada vez, o gancho de liberação funcionaria corretamente, que o paraquedas então se abriria por completo, que ele descenderia à terra em uma velocidade controlada até aterrisar, e que então aquilo tudo chegaria ao fim, que ele teria completado seis saltos ao invés de cinco, ou oito ao invés de sete. Para Perec era naquele momento, o momento de atirar-se, que era colocado o problema da escolha (“o problema da vida como um todo”), o momento em que ele precisava colocar sua confiança em coisas completamente estranhas a ele.

É sobre essa necessidade de confiança que queria lhe falar. A pessoas como nós (e como nossa amiga Elvira Vigna) que, na dúvida, tendem a acelerar, talvez seja quase um disparate (minha nova palavra favorita) simplesmente confiar. Vamos logo à ação, aos planos, ao foco, sem muita paciência. Não há, afinal, tempo. Pois esta semana, passeando pelo parque aqui perto, me deparei com um pequeno quiosque onde funciona uma minúscula biblioteca. Ali é possível pegar um primeiro livro emprestado deixando-se outro, e dali em diante sempre a partir da troca. Deixei uma cópia do meu romance e peguei o único livro que me interessou: “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke. Nunca lera nada do poeta austríaco e seu famoso livro só existia para mim em memórias distantes de menções alheias. Acontece, minha amiga, que são essas as circunstâncias que se apresentam quando se confia. Nestas cartas encontrei as palavras que precisava para esse momento de dúvida e solidão, encontrei a coragem e a paciência para, frente ao vazio, me atirar, de novo e de novo. Para além de qualquer possível idealismo ou exagerada introspecção, Rilke me fez um convite a olhar meus guindastes uma segunda vez, a não domesticar meu novo cenário de forma precipitada, a confiar naquilo que, invariavelmente, chega. Transcrevo aqui para nós um trecho de uma carta sua enviada a Franz Xaver Kappus em 16 de julho de 1903:

Se se ativer à natureza, àquilo que nela é simples, àquilo que é pequeno, que quase ninguém vê, e que tão inesperadamente pode tornar-se grande e incomensurável; se tiver este amor ao que é ínfimo e, de modo inteiramente singelo, como um servidor, procurar ganhar a confiança daquilo que parece pobre: então tudo se lhe tornará mais fácil, mais uno e, de algum modo, mais apaziguador, talvez não no plano do entendimento, que recua, surpreso, mas no mais íntimo da sua consciência, do seu estar desperto, do seu saber. (…) Gostaria de perdir-lhe, tão bem quanto me é possível, que tivesse paciência face a tudo o que no seu coração está ainda não resolvido, e que tente amar as próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos numa língua muito distante. Não investigue agora as respostas que não podem ser-lhe dadas, porque não poderia vivê-las. E trata-se de tudo viver. Por ora, viva as perguntas. Talvez depois, sem dar por isso, paulatinamente, num dia distante, venha a viver o trajecto para dentro da resposta.

Descobri recentemente que as portuguesas chamam as pesquisadoras acadêmicas de investigadoras. Gosto dessa preferência pela palavra investigação. Ela me remete a um gesto ainda mais duradouro, curioso e paciente. Com você, minha amiga, que compartilha comigo a pressa do mundo, divido também também as recomendações de Rilke, que sugere: “deixe que a vida lhe aconteça”. Desejo que possamos encontrar em nós mesmas a atenção, coragem e confiança para seguir investigando, para seguir nos surpreendendo, mesmo quando, à primeira vista, só se estenda à nossa frente o inescrutável nada. E que possamos viver nossas perguntas com a calma de quem acredita, mesmo que desconheça, nas respostas.

Com carinho,

Gabriel

Diário de Portugal #1

Lisboa. 26 fevereiro 2024.

Minha amiga,

Pensei um tanto em como começar esse diário de bordo e a forma que escolhi no fim das contas é aquela que na maioria das vezes me chama, a carta. Queria evitar a carta, me provocar a tentar dizer as coisas de um modo que me fosse um pouco mais estranho, mas já houve mudança suficiente nos últimos dias. Além disso, fui lembrado esta semana de que é da repetição que frequentemente vem a diferença. Por isso, mando aqui uma carta-diário, para você e todas as outras amigas a quem chegue essa correspondência.

Faz uma semana que cheguei à Lisboa e nesse curto tempo há já bastante. Vim sem muitos planos. Minhas responsabilidades resumem-se a cuidar de um apartamento e dos cachorros que vivem nele. Fora isso, sei que ao final dessas 8 semanas aqui irei participar de um evento literário cujo tema é viagem. Saí do Rio com esse desejo: viajar. Guardei a recomendação que você me enviou em uma mensagem no dia da minha partida, quando disse que, nestes nossos tempos de redes e mídias, é importante saber partir. Tomei aquilo como um conselho essencial para esse momento e embarquei assim, olhando para frente.

Foi com os olhos abertos e amplos que passei essa primeira semana caminhando pela cidade, percebendo toda a alteridade que me rodeia. Já vim aqui outras vezes (a última não faz nem dois anos) e não estou desacostumado às viagens. Ainda assim, há agora algo de inédito, algo de mais curioso na arquitetura da cidade e no quanto o espaço físico afeta meus movimentos e meu corpo (panturrilhas constantemente inflamadas pelas ladeiras), na forma distinta de se usar e compreender nossa língua (Caio me sugeriu conversar o tanto quanto puder com os livreiros), nas singularidades da relação com a passagem do tempo (mesmo sendo uma capital, há uma outra velocidade: dos peões [pedestres], do trânsito, das condições meteorológicas). Suspeito que essas impressões sejam resultado desse partir que, apesar de temporário, é consciente e proposital. Um partir também em busca, à procura de um entusiamo (essa palavra que restou comigo desde que a li em “O arquivo das crianças perdidas”, de Valéria Luiselli, que ali a parte em en, theos, seismos, ou “uma espécie de terremoto interno produzido quando uma pessoa se permitia ser possuída por algo maior e mais poderoso”). Um desejo por um abalo sísmico, por um transbordamento. Quando dividi isso com as colegas dos estudos de dramaturgia, lembraram-me da noção de estado na preparação do ator do Stanislávki, que na tradução brasileira mais recente direto do russo se transformou em sentir-a-si-mesmo. Esse é o estremecimento que teu conselho causou em mim.

Foi também nesta semana sísmica que fui ao encontro aberto de composição em tempo real de João Fiadeiro no Fórum Dança. Para explicar o trabalho de toda uma vida, João usou uma folha de papel e quinze minutos. Ele disse que estamos todos seguindo nossas vidas (nossas vidinhas, disse) e essa vida é o plano que conhecemos. Há por vezes dobras inesperadas nesse plano, tanto na escala macro (a pandemia) quanto na micro (minha viagem). Nossa resposta mais imediata e instintiva é retornar o quanto antes a um novo plano que, mesmo diferente, se assemelha ao original, ao que conhecemos, à normalidade. É assim o nosso reflexo (reflexão). Há nesse espaço da dobra, no entanto, uma alternativa, uma alternativa a seguir em frente, a mudar novamente, a partir. Na dobra, há também o espaço para permanecer. Nesse instante em que as coisas se alteram, João nos convida a adentrar a ínfima Brecha que parte a seta cronológica do tempo, a mergulhar na falésia e repará-la (reparar como quem observa, mas também como quem para duas vezes e ainda como quem remenda). É nessa desaceleração da observação e resposta e resultante permanência no desconhecido (que você e eu já tanto fizemos juntas com nossas colegas de linóleo) que se dá o trabalho, e agora também a viagem. É assim a nossa intuição. O instante mínimo do presente onde posso tentar compor uma carta.

Por fim, minha amiga, ruminando isso tudo lembrei também de um ensaio da filósofa estadunidense Agnes Callard que li em junho do ano passado na New Yorker no qual ela faz uma defesa contra (um ataque?) às viagens. No texto (entitulado “The Case Against Travel”) ela argumenta que nosso principal desejo ao viajar é suspender os parâmetros da vida cotidiana (nossas vidinhas) em busca da mudança, da diferença, mas que na verdade continuamos as mesmas quando viajamos, que nosso movimento enquanto turistas (aqueles viajantes que buscam o “interessante”) remete ao de um bumerangue, retornando-nos sempre ao mesmo lugar de onde saímos. Seguimos insistindo no poder que nossas viagens têm de nos transformar, de aprofundar nossos valores e expandir nossos horizontes, mas seria mesmo possível averiguar esse fenômeno por si mesmo? É possível confiar na própria introspecção para distinguir uma mudança real de uma ilusão? Agnes sugere que, ao invés de nos locomovermos para sentir, sigamos apreciando o que está longe à distância e que sejamos viajantes estáticos, da imaginação.

Fiquei me perguntando o que você diria à Agnes se fôssemos nós três comer um pastel de nata em Belém, você que uma vez me disse que da viagem nunca se volta. Também não sei se concordo com ela, se aceito que a viagem é apenas uma forma de fraturar a expansão do tempo que temos em nossas vidinhas para nos distrairmos do nosso destino final e comum. Por enquanto, sigo tentando permanecer na dobra, na falésia, entendendo também o teu saber partir como um saber rachar, fender e entrar.

Com carinho, até a próxima carta,

Gabriel