não há palavras

As palavras estão por todos os lugares. São exibidas. Estão no silêncio do lago, de água verde e misteriosa. Estão no píer imóvel e solitário, que à noite não serve ninguém. Estão no cheiro do gim carregado pela brisa da noite. Estão nos ruídos dos jovens ao longe que acreditam existir sozinhos. Estão no cisne que desliza à margem, enroscado na própria melancolia. “Escreva-me! Escreva-me” – grita o cisne. Estão nas boias que não desistem na batalha da física, e nos barcos que dançam por obrigação amarrados uns aos outros na marola da madrugada. E em seus longos mastros, que junto das velas recolhidas formam ângulos no céu sem estrelas. Ângulos que me fazem tão, tão triste. Choro pelos ângulos, e até em minhas lágrimas estão as palavras. Citando a ardência do rosto, a permeabilidade da pele, a hidrodinâmica da gota. Tantas palavras pra tudo mas nenhuma pra mim. Sou como um dicionário que acha definição para tudo, mas que ao querer dar razão a si mesmo não encontra nada além da irônica e inútil metalinguagem.

-2013

Ela

Ela toca (e pega) fogo!
Intocável, insuperável, inalcançável e irreal também.
Delatora da arrogância alheia, cega à própria intransigência. Declara aos berros as suas certezas certamente mais certas que as da plateia que a ouve. Nem se dá conta de que fala sozinha, de que a verdadeira virtude é saber escutar. Sabe tudo e não sabe que nada sabe, que ninguém sabe nada, que sempre nunca se sabe mais e mais. Acha que soube agora tudo que há pra se saber. Hermética, um tanque de guerra de escotilha fechada pronto para botar abaixo toda e qualquer muralha a frente, mesmo que esta não esteja em seu caminho. Nada mais pode ficar de pé além da Verdade de v maiúsculo, a que diz que todos, menos os do contra, merecem ser ouvidos. E vai, a mil, como um ônibus que mal se prende ao chassi, carregando todo o passageiro companheiro, sabendo que chegará sã ao destino cada vez mais próximo. Sábia, sábia ela, que por não aceitar o assento em outro lugar, nunca vê, logo ali, o sabiá.

-2013

algo sobre tempo

Choveu forte em minha vida. Choveu forte a vida inteira. Às vezes, ventava também. Fazia frio também, às vezes. Mas chovia o tempo inteiro. Ainda chove. Quem sou eu para falar do tempo? Não há rugas em minha cara. Não há fios brancos em meus cabelos. Não há legados para minha existência nem netos para meus pais. Não há história para meu nome, não há honra para meus textos. Não há glória, não há paz. Não há experiência para meus medos, não há conforto para minhas angústias. Há de haver? Sou virgem de tempo; para mim, há de sobra. Enquanto outros possuem só a sobra dele. A primavera que Florbela cantou assim florida ainda não despontou em minha vida. Agora somente chove e venta e faz frio no inverno de uma espera. Onde foi parar meu tempo? Será que ele algum dia existiu? Será que ele algum dia retornará? Numa das manhãs de minha velhice, quando não houver sonhado, levantarei de um travesseiro limpo uma face cheia de pregas e me olharei então no espelho de uma casa que não é minha. Eu não tinha este rosto de hoje, Cecília, assim calmo, assim triste, assim magro. Em qual dos outros espelhos da vida ficou perdida minha face? Ficou perdida minha fúria, minha alegria e meu vigor? Em que espelho fiquei perdido eu mesmo? O incomensurável tempo vai de segunda a domingo e cabe na moldura de um reflexo apressado, que logo reflete algo novo. E que logo esquece como eu me parecia. Na segunda, o tempo passa pro moço no ônibus, que leva seu filho num carrinho e que o olha perplexo, com orgulho e ciúmes. Que vale dele as próprias causas e que espera os êxitos pra si não mais possíveis. Que deixou de ser homem pra tornar-se herói. Na terça, o tempo passa para as árvores, de cujos galhos são arrancadas as folhas secas que pagam respeito à federação do tronco até o instante da queda na batalha do outono. Umas envelhecem laranja incendiadas, outras num rubro doente, e algumas até num violeta desavergonhado. Mas o fim vem pra todas, independentemente do quão verde um dia foram. Na quarta, o tempo passa para o relógio que não controla os ponteiros. Carregam sozinhos a pesada soma dos dias no total das semanas e o produto dos meses na potência dos anos. Vai ligeiro na frente o dos minutos e atrás, retardatário e cruel, o caçula das horas. Na quinta, tira-se o relógio da parede, mas os ponteiros de um outro continuam rodando sem prestar atenção em mim. Que se quebrem todos os relógios do mundo para que nunca novamente saibamos quando sorrir e quando chorar! Na sexta, o tempo passa para o menino, que, em algum momento dos últimos segundos, tornou-se gente grande e deixou a doçura da infância pra nunca mais parar de amargar o sabor acre da madureza. No sábado, o tempo não passa para ninguém. No domingo, o tempo passa pra mim que mal o percebo passar. Dane-se minha idade! Vivi tempo suficiente apenas pra saber que preciso viver mais. Mas o tempo escorre por meus dedos e faz questão de se sentir escorrer. Faz questão de encurtar a alvorada de minha noite, Florbela! Tome tempo!, um pouco de realidade Espanca. Que da ilusão de seus ponteiros ninguém se ilude mais. Ninguém aguenta mais se iludir.

E que termine meu dia num crepúsculo atemporal.
Que para o tempo me saiba ceder… Para se eternizar…

-2013

s.t.

Adoro saber estar sendo olhado por alguém que não saiba que disso sei. Melhor ainda é quando quem olha é um desconhecido. Podemos então causar a primeira impressão que quisermos. Posso ser um lunático que vagueia sozinho, um galã da vida real ou um artista perturbado que senta no último banco do ônibus. Pouco importa, porque aquele você vai embora assim que quem olha pisca. O problema é quando se quer ser aquela primeira impressão pra sempre, quando ela tem importância. Aí quem tem que se olhar sou eu mesmo, e dessa vez sem que eu saiba. Mas não há motivo pra alarme, porque há sempre uma primeira chance de causar uma segunda impressão.

-2013

Sobre o natural

Naquela tarde de que nunca me lembraria, deitei na grama alheia. Estendi o lençol sobre o tapete da floresta, bem em cima das plantinhas cujo nome não me lembro. Pousei o corpo lentamente sobre a toalha e senti o meu peso maltratar a natureza. Enquanto o chão moldava a minha silhueta, me sentia observado. Sentia os habitantes locais percebendo a minha presença, desconfiados do corpo estranho que aparecera sobrenaturalmente. Eu era evitado, tudo acontecia em torno de mim, sem que eu participasse. Mas com o passar dos minutos e o transcorrer do sol, eu passei também a ser parte da natureza, simples unidade da vida no jardim. Os besouros, as abelhas, as formigas, as libélulas, agora ninguém mas parecia me perceber, eu era apenas um tronco contra o qual um alguém distraído voava dez vez em quando. Nunca foi tão bom ser ignorado. O estranho virara comum, o antigo se adaptou ao novo, talvez até sem perceber, mas se adaptou rapidamente. E eu fui o único que senti a mudança. É incrível – pensei naquela tarde – como nós somos a única parte da fauna que não nos adaptamos ao novo, digo ao verdadeiramente novo, ao sobrenatural. Não estamos no topo da cadeia, mas sim dentro dela, tacanhos. Cada dia que passa nos tornamos mais e mais parte dela, me sinto apenas mais uma barra nas grades da cela. Somos penitenciários do pudor, sentimento que só nós, animais humanos, sentimos. Uma girafa nunca se sentiu envergonhada, o porco nunca ficou sem graça. E muito menos os insetos do jardim tiveram o rosto em rubor porque sem querer esbarraram em mim. É bem verdade que não pediram desculpas, mas quem tem tempo pra desculpas quando se há por todos os lados flores a polinizar. Passei a tarde inteira naquela grama, lisonjeado pelo flerte dos insetos, com ciúmes apenas das margaridas, a quem eles davam mais atenção.

-2013

Dama no armário

Se escrevo tenho que buscar a máquina no fundo esquecido do armário, o peso sempre maior que o da memória. Apoio-a numa mesa que não mais a recebe como antes, não é mais tão bem-vinda. Ficam fora de contexto as partes descomunais, o tamanho grita excesso e a máquina, que teve sempre sua glória, fica um pouco envergonhada. Mas não perde a majestade. Funciona à eletricidade e por isso enquanto não é datilografada, faz um ruído de reclame: “Cadê? Não vem nada?”. Manifestam-se umas teclas e outras letras, mas logo predomina de novo o silêncio maquinário, todas as peças já cientes do fracasso. Fica ali, velha e importante, rainha de outros textos, barulhando na mesma busca minha. Minha máquina suplica e eu não posso ajudar. Admito a decepção e finalmente a máquina volta pro armário, no canto óbvio de que sempre se esquece, juntando poeira e amargura, minha única dama de ferro.

-2013