Diário de Portugal #4

Lisboa. 18 março 2024.

Friend,

Ontem meu pai fez 68 anos. Depois que passei dos 30, tenho a impressão de que se tornou mais possível imaginar a mim mesmo nestas idades antes ainda mais distantes. Sempre tive o hábito de fazer esse exercício, tentar fabricar uma imagem minha no futuro. Se me ativesse mais ao presente, talvez de fato fosse uma pessoa menos inquieta e ansiosa (como dizem que acontece), mas futuro e passado me ocupam tanto quanto – se não mais – o agora. E mesmo que muitas vezes me atormente essa mania errante da minha imaginação, a verdade é que não sei se seria capaz de viver de outra forma. A preocupação com a passagem do tempo é algo que me constitui e que norteia minha curiosidade na vida. Certamente minha relação com essa força que rege todas nós – o tempo – será outra se e quando chegar a minha vez de fazer 68 anos. Ou talvez eu descubra, para minha surpresa, que não terei mudado tanto quanto esperava e que, apesar de habitando um outro corpo, meus anseios terão permanecido relativamente ilesos. Desta última hipótese duvido bastante, mas por que temos tanta certeza da mudança?

Busco uma fotografia do meu pai enquanto jovem, ele na beira de um rio, vestindo um minúsculo short e regata, com um bucket hat na cabeça e uma câmera na mão. Ele sorri de olhos fechados, deve ter vinte e poucos anos, deve ser um pouco mais jovem que eu. Mando a fotografia para ele. Ao contrário das minhas tentativas de me imaginar na distância do futuro, ele provavelmente consegue se reconhecer neste momento remoto e sentir no próprio corpo a densidade dos anos. Suponho que seja esse um dos privilégios de envelhecer. Em compensação, à medida que a vastidão de seu passado aumenta, limita-se cada vez mais o espaço de seu futuro. Apesar das diferenças entre nossos atuais pontos de vista, viver seguirá sendo difícil. No entanto, me pergunto se para ele, de onde está, aparecem um pouco mais claras as mudanças pelas quais passou durante sua vida. Talvez pouco do jovem sorridente da fotografia ressoe nele hoje. Talvez, do topo de sua idade, ele enxergue sua vida de maneira episódica, identificando suas muitas versões e os períodos de transição de uma para outra. Ou talvez ele observe seu tempo na Terra de forma mais linear, sua essência permanecendo inalterada através de todas as sinuosidades vividas. Ainda não tive a chance de perguntar a ele de qual dessas duas perspectivas ele se sente mais próximo. Resolvi deixá-lo aproveitar o aniversário em paz.

Foi um artigo de Joshua Rothman na The New Yorker que li esta manhã (“Becoming you”, de outubro de 2022) que me provocou esses questionamentos. Nele, Joshua coloca-nos a pergunta: Com o passar do tempo, permanecemos as mesmas ou aquelas que somos mudam substancialmente? Acho que consigo te ouvir dizendo que todas as pessoas se alteram de forma profunda através dos anos e das muitas experiências que as moldam, mas não acho que essa seja a única resposta. Não sei se meu pai, mirando o jovem da foto, não reconhece um tanto de si mesmo que resta com ele até hoje, aos seus 68 anos. É, certamente, uma questão subjetiva que pertence apenas a cada uma de nós e que será sempre atravessada também pelas circunstâncias nas quais estamos inseridas. Ainda assim, te escrevo sobre isso hoje por duvidar que seja possível exercer sozinho (pelo menos para mim, por enquanto) tal discernimento. Sou capaz de perceber, intelectualmente, as muitas transformações que vivi, em especial nos últimos anos. Mas daqui de onde te envio esta carta-diário, sinto-me impulsionado por uma linha que me conecta diretamente com todos aqueles que já fui, uma linha que atravessa todas as minhas decisões, meus arrependimentos, minhas correções de rota. Uma linha que me impede de dizer simplesmente que sim, as pessoas mudam. Quando releio meus diários, tenho dificuldade de ouvir a mim mesmo como autor daquelas palavras. No entanto, muitas das inquietações guardadas naquelas páginas me perseguem até hoje, mesmo aqui, em Lisboa, passadas as primeiras semanas de encantamento com a viagem. Não vejo nisto evidência de que minha personalidade não se desenvolveu e sei que você concordaria, portanto não consigo deixar de acreditar também que algo em nós se mantém (talvez, em especial, as partes que mais nos incomodam e também aquelas que mais valorizamos). Você que me conhece há tanto tempo com certeza lembra de outras versões minhas, sem que deixe de reconhecer, a cada vez que me encontra, aquele mesmo Gabriel que há tantos anos cruzou por acaso o seu caminho no inverno inglês de Salisbury.

Acho que essa minha inclinação à ideia de continuidade vem do meu interesse, em particular, pela auto-narração. Segundo Rothman, quem adota o costume de narrar a si mesmo pode acabar por entrar em um ciclo auto-realizável, em que aos poucos vamos sincronizando nossa vida com a história que escrevemos e revisamos. (Isso passa, inclusive, pela concepção de ficção que mais me interessa: a ficção não como o oposto da realidade, mas como seu complemento, como seu dispositivo de reconfiguração.) Apesar de me sentir atraído por histórias que suspendem as noções de causalidade e totalidade, parece também haver em mim algo que busca instintivamente os pontos conectados por uma história. Não quero dizer que acredito que isso seja algo que se encontre. Quanto mais tento me aproximar das ideias de começo e fim (ideias que venho buscando compulsivamente nos últimos muitos meses), mais me sinto perdido no meio de tudo. Nessas horas encontro algum consolo em Sarah Manguso, que tentando dar a ver aquilo que por muitos anos a fez manter um diário, conclui que são justamente os meios (mais do que os começos e finais) que sustentam a força do nosso desejo e seguem movendo o sempre que está constantemente acontecendo (não à toda seu livro chama-se Ongoingness).

Constâncias e impermanências à parte, o importante é seguir sendo si mesmo, e pelo sucesso desse desafiador empreendimento devo um tanto a você. É a partir do testemunho das amigas que seguem nos acompanhando pelas tortuosidades da vida, pelas inesperadas e por vezes incoerentes mudanças, que podemos sempre tentar voltar a nós mesmas, mesmo quando esse caminho de volta já não está tão evidente. Depois que passei dos 30, tenho tentado cultivar e proteger ainda mais esse tipo especial de vínculo, aquele ao qual nos enlaçamos para poder arriscar nos perder. Só assim, acredito, é possível afirmar que independente de quem fomos ou de quem nos tornaremos, seguimos investidas na busca.

Com carinho,

Gabriel

Diário de Portugal #3

Lisboa. 11 março 2024.

Beibi,

Há no quinto andar do Centre Pompidou, em Paris, um quadro do pintor francês Yves Klein intitulado IKB 3, Monochrome bleu. É uma tela de dois metros por um e meio, suspensa no meio da parede branca da galeria, protegida por uma caixa de acrílico transparente. O quadro é inteiramente pintado do azul inventado por Klein (International Klein Blue – IKB), um azul escuro, denso e aveludado. A primeira vez que vi uma obra de Klein foi há alguns anos. Na época, eu desconhecia a história do pintor e sua cor, portanto o que senti foi genuinamente uma resposta direta do meu corpo ao azul, a mesma sensação que agora sempre tenho quando encaro uma dessas telas: há uma suave expansão do meu corpo, uma dilatação dos meus órgãos sensoriais que instantaneamente aguça minha atenção, como se um feche de luz se abrisse no espaço e absorvesse de repente o meu foco. Sinto-me, de certa forma, hipnotizado, ou seja, numa mistura ambivalente de profundo relaxamento, intenso alerta e inevitável vulnerabilidade. É desconcertante. Desde então, sempre tive certa curiosidade por Klein e seu azul, essa cor elusiva que aliciou tantos artistas. Gosto muito de um texto de Dorrit Harazim em que ela relaciona o azul ao desejo e a sua intransponível distância. O azul, essa cor que é tão presente em nosso imaginário e que ainda assim é sempre uma ilusão: no céu, no mar, nos raros seres que a ostentam, devemos esta cor quase sempre a fenômenos de absorção/dispersão/refração no comprimento das ondas de luz, já que quase não há, na natureza, a ocorrência deste pigmento. No texto, Harazim cita a ensaísta norte-americana Rebecca Solnit, que em seu livro “Um guia para se perder” escreveu:

“Há muitos anos que me emociono com o azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica entre você e as montanhas.”

Talvez seja por isso que Klein passou a vida perseguindo seu azul e que seu azul me persegue sempre que estou em sua presença. Não sei muito sobre Yves Klein para além do que ele me faz sentir, mas me parece que há nessa obsessão pela procura do “azul verdadeiro” uma intenção de nos convidar a renunciar, mesmo que temporariamente, a nossas existências corpóreas como as conhecemos e a nos impregnar do imaterial, do irrepresentável, desta cor impossível, para que possamos tentar sentir a partir dela. Não à toa Klein pensava também através da performance (alguns de seus trabalhos com a tinta incluíam o “uso” controverso de mulheres nuas e seus corpos como “pincéis”). Neste seu interesse pela criação de um outro estado de sensibilidade parece haver algo fundamental também a esta arte tão intrigante que tem como matéria-prima as circunstâncias.

Em Lisboa, vi alguns dias atrás uma fala da artista e professora brasileira Eleonora Fabião (falei dela para você). Era o dia de seu aniversário, 29 de fevereiro, esse dia que quase nunca acontece. Ela agradeceu, emocionada, por aquela sala repleta de pessoas (incluindo seu companheiro e sua filha) e por ter a oportunidade de celebrar aquela data falando de seu trabalho (de sua vida). O pouco que conhecia dela e de sua prática chegou até mim através de amigas que tem por ela grande admiração, e logo entendi o porquê. Eleonora produz o mesmo fascínio que Klein com a própria presença. Fala e preenche o espaço de maneira precisa e ágil sem, no entanto, deixar de ser atenciosa com aquelas que a escutam. Falou de alguns elementos essenciais de sua pesquisa e de seu trabalho atualmente em curso, e por fim separou algum tempo para aquilo em que parecia estar mais interessada – a conversa (citando William Pope.L: “Artistas não fazem arte, eles fazem conversas.”). Saí de lá transfixado por uma ideia: e se esta viagem e estes diários-cartas fossem eles também um programa performativo?  

Ao final de cada uma das semanas que passarei em Portugal (seis em Lisboa e duas em Óbidos), escreverei uma carta-diária endereçada a uma amiga (diferente a cada semana) a partir das vivências durante a viagem. As cartas-diários serão também publicadas semanalmente no meu site. Cada uma das cartas deverá ficar pronta, no máximo, ao final do dia na segunda-feira.

Foi este o enunciado que naturalmente me propus (e que só agora escrevo) ao chegar aqui. Uma ação estipulada a ser realizada “sem ensaio prévio”. É esta ação a ser cumprida que vem possibilitando, norteando e movendo minhas experiências durante esses dias. Não saio às ruas em busca daquilo sobre o que possa escrever, mas é o gesto de, a cada semana, sentar junto ao computador em frente à janela e tentar pensar sobre aquilo que experimento que tem cultivado em mim, como imagina Eleonora, um estado de corpo-em-experiência. Neste estado buscado pela artista, renunciamos “ao torpor da aderência e do pertencimento passivos” em nome da desarticulação dos processos ditos “naturais”, em uma – importante salientar – prática que ela relaciona com a noção de Corpo-sem-Orgãos (portanto, des-organizado) de Deleuze e Guattari. É através da proposital mudança de minhas “circunstâncias” (geográficas, mas também sensoriais e psicofísicas) que tenho buscado a sustentação deste estado mais atento, mais poroso. É um estado (ou um sentir-a-si-mesmo, como escrevi na última carta) que é pautado, como defende o dramaturgo Diogo Liberano, não pela lógica da produtividade, mas pelo padecimento de paixões, pela vontade de “levar o corpo para passear”, pela crença de que “escrever não é uma prática do saber, mas uma prática do dispor-se a”. Essas conexões que surgem a cada vez que sento para escrever se apresentam quase que, para usar livremente uma palavra de Fabião, por mágica. É dessa mágica que parecem também surgir, durante essa minha breve visita à Paris, a apresentação de Renato Linhares no Centquatre em que o performer patina (sobre rodas) pelo espaço de uma sala vazia manuseando imensos – não há melhor palavra – seres plásticos, numa dança hipnotizante que dá vida ao inorgânico. Ou ainda a performance da atriz Clotilde Hesme no papel de Hamlet na adaptação da diretora Christiane Jatahy, que encarando a platéia lotada do Odéon, disse em francês as palavras escritas por Sheakspeare há 400 anos. Sentado na segunda fileira, decidi por um instante abrir mão de tentar apreender o sentido do que ela dizia e pude enxergar, nos seus marejados olhos azuis, nós mesmos, todos nós em absoluta mudez, imóveis no escuro, nas poltronas de veludo vermelho e pelos balcões dourados, incapazes de respirar até ouvirmos, em sua assombrada voz, Le reste est silence.

É neste estado que pretendo seguir realizando esta ação, que apesar de aparentemente simples, tem me causado um espantoso desarranjo (bem aquilo de que precisava). Fica aqui então para você, beibi, como oferta ou presente, um programa que espero, caso decida realizá-lo, te traga a oportunidade de ir ao encontro de algo inesperado:

Em um sábado de manhã quando haja sol, sairei de casa e caminharei pelas ruas do meu bairro. Durante todo o percurso, escutarei através dos melhores fones de ouvido que estiverem a minha disposição a faixa “Siebengesang”, de Hans Otte. Não seguirei nenhum trajeto específico, deixando-me levar apenas pela intuição. Não tirarei os fones de ouvido até o final da música, mesmo que seja interpelada por alguma pessoa. Ao final da música, sentarei no primeiro café que encontrar e escreverei, em um caderno, aquilo que meu corpo pedir.

Com carinho e saudades,

Gabriel

Diário de Portugal #2

Lisboa. 4 março 2024.

Buri,

Quando enviei uma carta-diário para J na semana passada, decidi que as próximas entradas (este continua sendo um diário, mesmo que feito de cartas) seriam destinadas a amigas que amo e que hoje estão longe. Esta é para você.

Fiquei pensando esses últimos dias na curiosa tentativa de se estabelecer uma rotina em um lugar estranho. Criatura de hábitos que sempre fui, basta passar uma noite em qualquer nova cidade para que já comece a fabricar costumes. Desfaço a mala o quanto antes, familiarizo-me com os armários da casa, entendo a nova ordem doméstica. Aí então escolho as melhores rotas pelo bairro, elejo um supermercado, minha academia, averiguo as normas e termos locais e vou aos poucos criando minhas novas tradições. Imagino que isso possa te parecer excessivamente ordeiro e talvez até compulsivo, mas há pra mim um tanto de conforto na constância. É nesses singelos novos rituais que vou me resgatando em meio ao desconhecido. Sei que posso estar me contradizendo, uma vez que já afirmei o quanto me interessa o não-saber nesta temporada que estou passando aqui. Mas há de se encontrar, para a saúde de um capricorniano inveterado, uma dose mínima de estabilidade.

Não por acaso uso essas palavras – resgatar/estabilidade. Da janela em frente à qual escrevo avisto um imenso guindaste, uma grua amarela que passa os dias girando em seu próprio eixo de um lado para o outro. Desde meu primeiro dia aqui essas estruturas se tornaram um elemento constante do meu novo cotidiano. Elas estão por toda a cidade, resultado da especulação imobiliária desenfreada dos últimos anos que tornou Lisboa uma das cidades mais inviáveis para se viver na Europa (os custos dos aluguéis sobem sem que os salários locais os acompanhem, fazendo com que a maioria dos portugueses se retirem para novos distritos enquanto os imóveis na cidade concentram-se na mãos de expatriados cuja renda vem de outros países, ou convertem-se em estâncias de locação por temporada). É também possível que essa omnipresença dos guindastes seja uma ocorrência do fenômeno Baader-Meinhof, aquela tendência cognitiva que afeta a maneira como percebemos o mundo e cria uma ilusão de frequência que nos faz acreditar que alguma coisa (um objeto, uma palavra, um conceito) fica aparecendo para nós de novo e de novo. A medida que criamos essa hipótese (os guindastes estão querendo me dizer alguma coisa), nossa atenção volta-se ainda mais para o estímulo em questão e passamos a encontrar as mesmas evidências por todo canto, num ciclo auto-confirmativo e vicioso. Entre as possíveis explicações que fabrico:

  1. As gruas são símbolos que complementam meus sonhos recentes em que sou soterrado por uma avalanche, de dentro da qual, talvez, serei içado;
  2. São uma representação da minha mãe, cuja cor favorita era o mesmo amarelo do ferro dessas estruturas;
  3. Guardam algo do mistério da relação entre peso e leveza (mistério que restou comigo desde que li Richard Serra recordando-se do dia em sua infância quando encontrou sua matéria-prima), justo essas estruturas cujo braço vertical em espanhol chama-se – veja – pluma.

E através de todas essas suposições, deslizo pelos trilhos da memória até uma fala de George Perec (cuja transcrição foi posteriormente publicada no livro Je suis né) sobre a época de sua vida em que ele servia no exército francês como paraquedista. Perec não chegou a ser enviado para lutar na Argélia (além de se opor ao conflito, foi no fim das contas dispensado pois seu pai havia morrido em combate em 1940), mas como recruta completou 13 saltos em treinamento. Ele conta que apesar de repetir a ação diversas vezes, pensava sempre em desistir até o último momento (mesmo sabendo que naquele contexto isso não seria possível), o instante derradeiro em que ele, já aberta a porta do avião, encarava os 400 metros à sua frente, ou seja, o vazio. Naquele instante, em que cada célula no seu corpo ordenava que ele desse meia-volta e retornasse ao seu assento, em que todas as fibras dos seus músculos petrificavam-se, naquele instante, ele afirmava, era preciso ter confiança. Confiança de que, a cada vez, o gancho de liberação funcionaria corretamente, que o paraquedas então se abriria por completo, que ele descenderia à terra em uma velocidade controlada até aterrisar, e que então aquilo tudo chegaria ao fim, que ele teria completado seis saltos ao invés de cinco, ou oito ao invés de sete. Para Perec era naquele momento, o momento de atirar-se, que era colocado o problema da escolha (“o problema da vida como um todo”), o momento em que ele precisava colocar sua confiança em coisas completamente estranhas a ele.

É sobre essa necessidade de confiança que queria lhe falar. A pessoas como nós (e como nossa amiga Elvira Vigna) que, na dúvida, tendem a acelerar, talvez seja quase um disparate (minha nova palavra favorita) simplesmente confiar. Vamos logo à ação, aos planos, ao foco, sem muita paciência. Não há, afinal, tempo. Pois esta semana, passeando pelo parque aqui perto, me deparei com um pequeno quiosque onde funciona uma minúscula biblioteca. Ali é possível pegar um primeiro livro emprestado deixando-se outro, e dali em diante sempre a partir da troca. Deixei uma cópia do meu romance e peguei o único livro que me interessou: “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke. Nunca lera nada do poeta austríaco e seu famoso livro só existia para mim em memórias distantes de menções alheias. Acontece, minha amiga, que são essas as circunstâncias que se apresentam quando se confia. Nestas cartas encontrei as palavras que precisava para esse momento de dúvida e solidão, encontrei a coragem e a paciência para, frente ao vazio, me atirar, de novo e de novo. Para além de qualquer possível idealismo ou exagerada introspecção, Rilke me fez um convite a olhar meus guindastes uma segunda vez, a não domesticar meu novo cenário de forma precipitada, a confiar naquilo que, invariavelmente, chega. Transcrevo aqui para nós um trecho de uma carta sua enviada a Franz Xaver Kappus em 16 de julho de 1903:

Se se ativer à natureza, àquilo que nela é simples, àquilo que é pequeno, que quase ninguém vê, e que tão inesperadamente pode tornar-se grande e incomensurável; se tiver este amor ao que é ínfimo e, de modo inteiramente singelo, como um servidor, procurar ganhar a confiança daquilo que parece pobre: então tudo se lhe tornará mais fácil, mais uno e, de algum modo, mais apaziguador, talvez não no plano do entendimento, que recua, surpreso, mas no mais íntimo da sua consciência, do seu estar desperto, do seu saber. (…) Gostaria de perdir-lhe, tão bem quanto me é possível, que tivesse paciência face a tudo o que no seu coração está ainda não resolvido, e que tente amar as próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos numa língua muito distante. Não investigue agora as respostas que não podem ser-lhe dadas, porque não poderia vivê-las. E trata-se de tudo viver. Por ora, viva as perguntas. Talvez depois, sem dar por isso, paulatinamente, num dia distante, venha a viver o trajecto para dentro da resposta.

Descobri recentemente que as portuguesas chamam as pesquisadoras acadêmicas de investigadoras. Gosto dessa preferência pela palavra investigação. Ela me remete a um gesto ainda mais duradouro, curioso e paciente. Com você, minha amiga, que compartilha comigo a pressa do mundo, divido também também as recomendações de Rilke, que sugere: “deixe que a vida lhe aconteça”. Desejo que possamos encontrar em nós mesmas a atenção, coragem e confiança para seguir investigando, para seguir nos surpreendendo, mesmo quando, à primeira vista, só se estenda à nossa frente o inescrutável nada. E que possamos viver nossas perguntas com a calma de quem acredita, mesmo que desconheça, nas respostas.

Com carinho,

Gabriel

Diário de Portugal #1

Lisboa. 26 fevereiro 2024.

Minha amiga,

Pensei um tanto em como começar esse diário de bordo e a forma que escolhi no fim das contas é aquela que na maioria das vezes me chama, a carta. Queria evitar a carta, me provocar a tentar dizer as coisas de um modo que me fosse um pouco mais estranho, mas já houve mudança suficiente nos últimos dias. Além disso, fui lembrado esta semana de que é da repetição que frequentemente vem a diferença. Por isso, mando aqui uma carta-diário, para você e todas as outras amigas a quem chegue essa correspondência.

Faz uma semana que cheguei à Lisboa e nesse curto tempo há já bastante. Vim sem muitos planos. Minhas responsabilidades resumem-se a cuidar de um apartamento e dos cachorros que vivem nele. Fora isso, sei que ao final dessas 8 semanas aqui irei participar de um evento literário cujo tema é viagem. Saí do Rio com esse desejo: viajar. Guardei a recomendação que você me enviou em uma mensagem no dia da minha partida, quando disse que, nestes nossos tempos de redes e mídias, é importante saber partir. Tomei aquilo como um conselho essencial para esse momento e embarquei assim, olhando para frente.

Foi com os olhos abertos e amplos que passei essa primeira semana caminhando pela cidade, percebendo toda a alteridade que me rodeia. Já vim aqui outras vezes (a última não faz nem dois anos) e não estou desacostumado às viagens. Ainda assim, há agora algo de inédito, algo de mais curioso na arquitetura da cidade e no quanto o espaço físico afeta meus movimentos e meu corpo (panturrilhas constantemente inflamadas pelas ladeiras), na forma distinta de se usar e compreender nossa língua (Caio me sugeriu conversar o tanto quanto puder com os livreiros), nas singularidades da relação com a passagem do tempo (mesmo sendo uma capital, há uma outra velocidade: dos peões [pedestres], do trânsito, das condições meteorológicas). Suspeito que essas impressões sejam resultado desse partir que, apesar de temporário, é consciente e proposital. Um partir também em busca, à procura de um entusiamo (essa palavra que restou comigo desde que a li em “O arquivo das crianças perdidas”, de Valéria Luiselli, que ali a parte em en, theos, seismos, ou “uma espécie de terremoto interno produzido quando uma pessoa se permitia ser possuída por algo maior e mais poderoso”). Um desejo por um abalo sísmico, por um transbordamento. Quando dividi isso com as colegas dos estudos de dramaturgia, lembraram-me da noção de estado na preparação do ator do Stanislávki, que na tradução brasileira mais recente direto do russo se transformou em sentir-a-si-mesmo. Esse é o estremecimento que teu conselho causou em mim.

Foi também nesta semana sísmica que fui ao encontro aberto de composição em tempo real de João Fiadeiro no Fórum Dança. Para explicar o trabalho de toda uma vida, João usou uma folha de papel e quinze minutos. Ele disse que estamos todos seguindo nossas vidas (nossas vidinhas, disse) e essa vida é o plano que conhecemos. Há por vezes dobras inesperadas nesse plano, tanto na escala macro (a pandemia) quanto na micro (minha viagem). Nossa resposta mais imediata e instintiva é retornar o quanto antes a um novo plano que, mesmo diferente, se assemelha ao original, ao que conhecemos, à normalidade. É assim o nosso reflexo (reflexão). Há nesse espaço da dobra, no entanto, uma alternativa, uma alternativa a seguir em frente, a mudar novamente, a partir. Na dobra, há também o espaço para permanecer. Nesse instante em que as coisas se alteram, João nos convida a adentrar a ínfima Brecha que parte a seta cronológica do tempo, a mergulhar na falésia e repará-la (reparar como quem observa, mas também como quem para duas vezes e ainda como quem remenda). É nessa desaceleração da observação e resposta e resultante permanência no desconhecido (que você e eu já tanto fizemos juntas com nossas colegas de linóleo) que se dá o trabalho, e agora também a viagem. É assim a nossa intuição. O instante mínimo do presente onde posso tentar compor uma carta.

Por fim, minha amiga, ruminando isso tudo lembrei também de um ensaio da filósofa estadunidense Agnes Callard que li em junho do ano passado na New Yorker no qual ela faz uma defesa contra (um ataque?) às viagens. No texto (entitulado “The Case Against Travel”) ela argumenta que nosso principal desejo ao viajar é suspender os parâmetros da vida cotidiana (nossas vidinhas) em busca da mudança, da diferença, mas que na verdade continuamos as mesmas quando viajamos, que nosso movimento enquanto turistas (aqueles viajantes que buscam o “interessante”) remete ao de um bumerangue, retornando-nos sempre ao mesmo lugar de onde saímos. Seguimos insistindo no poder que nossas viagens têm de nos transformar, de aprofundar nossos valores e expandir nossos horizontes, mas seria mesmo possível averiguar esse fenômeno por si mesmo? É possível confiar na própria introspecção para distinguir uma mudança real de uma ilusão? Agnes sugere que, ao invés de nos locomovermos para sentir, sigamos apreciando o que está longe à distância e que sejamos viajantes estáticos, da imaginação.

Fiquei me perguntando o que você diria à Agnes se fôssemos nós três comer um pastel de nata em Belém, você que uma vez me disse que da viagem nunca se volta. Também não sei se concordo com ela, se aceito que a viagem é apenas uma forma de fraturar a expansão do tempo que temos em nossas vidinhas para nos distrairmos do nosso destino final e comum. Por enquanto, sigo tentando permanecer na dobra, na falésia, entendendo também o teu saber partir como um saber rachar, fender e entrar.

Com carinho, até a próxima carta,

Gabriel

Enciclopédia de Talheres

Os talheres são objetos criados com o intuito de auxiliar o ato da alimentação humana. Consistem em longas ferramentas compostas, em uma de suas extremidades, por um cabo, onde se dá o seu manuseio, e, na outra, variando de talher para talher, de diferentes formatos de metal, onde se dá a sua utilidade, tendo como intuito comum o de levar bocados de comida à boca. Os feitios das extremidades úteis de cada um desses objetos similares diferenciam-se da seguinte maneira:

1. A faca

Extremidade que corta. Consiste geralmente em uma lâmina de metal que, em um de seus lados, afina-se cada vez mais até formar um gume, cujo fio executa a incisão. Interrompe assim uma ligação, como as fibras de um pedaço de carne de vaca, a trilha das sementes de um pepino, ou o trançado de um croissant de chocolate. Por vezes, tem dentes que serram alimentos mais difíceis de serem divididos em uma única moção, como um pão francês, o qual talha-se mais eficientemente por um vai e vem da lâmina dentada. Existem ainda os tipos de faca que não cortam, aquelas desgastadas, porém nunca descartadas da coleção do refeitório da empresa onde se trabalha. Essas são geralmente utilizadas com o principal intuito de empurrar as últimas porções do almoço para cima do garfo. São também as facas mais seguras de se lamber, já que, uma vez carecas, não oferecem perigo nenhum à língua que busca os restos de uma fatia de torta ou de uma pasta de amendoim.

2. A colher

Extremidade que colhe. Consiste em um metal em formato de concha, usado principalmente no apanhamento de líquidos comestíveis, como sopas e cremes. É recomendável que seja inserida por inteiro dentro da cavidade bucal durante a ingestão de seus conteúdos. É importante não sugar o líquido da colher e evitar que os dentes batam no metal, pois entende-se no Ocidente que é descortês causar barulhos durante a refeição. A colher pode ainda ser introduzida na boca em posição invertida, de costas para cima, no caso de alimentos mais viscosos, que grudam, como o brigadeiro de panela, ou o doce de leite. Dessa forma, a superfície da língua preenche mais inteiramente a concavidade da colher, maximizando assim a satisfação daquele que come.

3. O garfo

Extremidade que espeta. Consiste em um metal de três a quatro dentes alinhados, levemente curvados, que segue ora o mesmo método de apanhamento de alimento da colher, ora seu próprio processo de cravação de seus espetos no alimento. Não se recomenda a estratégia de fincar no caso dos alimentos dificilmente trespassados, geralmente aqueles de formato redondo, como ervilhas, ovos de codorna e cebolinhas em conserva. Diferentes dos da faca de serra, os dentes do garfo são longos e pontudos, como no cedro de Netuno, e podem assumir também o papel da faca, sendo possível usar sua lateral para cortar o alimento quando se há preguiça de usar as duas mãos aos mesmo tempo. Por esse motivo, o garfo é o talher mais versátil. É passível, no entanto, de ter seus dentes entortados e desviados em diferentes direções, o que o inutilizaria. Nesse caso, entretanto, basta introduzir-se uma faca por entre os dois dentes em cada um dos lados daquele empenado e força-lo de volta à posição correta.

-2016

O jogo de tênis

Dois tenistas em lados opostos de um campo de batalha. Joelhos flexionados e antebraços atentos, posição de ataque com espadas em punho. Na eminência do golpe, aguardam pacientemente em silêncio, até desferirem a pancada fatal contra o seu adversário. Trovão gutural. Deixam pairar sobre o ar pequenos fiapos fluorescentes da bola, que agora perfura penosamente o espaço pesado e opaco entre eles feito de luta, calor e suor evaporado. Choque. A cada disparo e guinada de pés, mais saibro no ar, se alastrando feito fogo, criando uma neblina incandescente sobre a quadra, a arena em chamas, tingindo toda a atmosfera e a pele dos soldados de um rubro sangue. Guerra. O combate lhes escorre pelo rosto, a respiração é ofegante, o público delira. Circenses. Entre ações e reações, sofrem-se pequenas derrotas, alcançam-se pequenas vitórias, e a resolução de ambos se mantém inabalável. Corpo a corpo, buscando redenção e glória. Seu esforço é heroico, sua faina é intensa, é um jogo violento, um duelo mortal. São gladiadores.

-2016

imagem:linguagem:memória

1

Ter um balde de água gelada jogado sobre nossas cabeças talvez seja a única sensação que consiga nos remeter às emoções explosivas da infância. A imagem do líquido glacial cobrindo a pele morna num arrepio quase nevrálgico dá vontade de gritar, pular, correr, jogar as mãos aos céus! Ou ainda, como para as criaturinhas da foto acima, de sorrir. E em seus sorrisos incontroláveis, de bater o queixo, eu também não consigo não sorrir. Sou sempre tomado pela ideia de que talvez esse tenha sido um daqueles melhores momentos da vida que passam despercebidos. Ter a foto é uma sorte, sorte de ter registrado para sempre um instante de total descompromisso. A câmera ainda capta o olhar de um dos meninos, mas ambos mal prestam atenção ao fotógrafo. Apenas aguardam, de potinhos em punhos, por mais água! Fora a sua festa, são alheios a tudo.

Mal se dão conta da anciã, fonte de seu júbilo. Pouco percebem que ela esparsa o jorro que cai da jarra de plástico para proteger seus corpinhos num afeto tão sútil que só de avó. Não observam o seu próprio regozijo, estampado em um sorriso escondido atrás da brincadeira. Reparam menos ainda na existência da senhora de pernas serenamente cruzadas ou nas duas silhuetas que aparecem ao fundo, dois homens servindo-se em silêncio do espeto de carne disposto no meio da mesa entre eles. O contraste entre a alegria dos meninos em primeiro plano e a taciturnidade dos homens ao fundo é para mim a própria essência da fotografia, figurando a perda da inocência durante a vida. Como as crianças, os dois senhores passam a tarde de torsos nus, mas esses não são mais leves e radiantes, porém curvados e sombrios. Nenhum dos dois sorri mais, apenas mastigam a carne fibrosa do churrasco em meio à escuridão. Ainda noto aquele mais à direita mirando de muito, muito longe a felicidade dos miúdos em uma nostalgia quase amarga. São o exato oposto das criaturinhas e, ainda assim, o seu futuro.

Apesar da realização trágica, os sorrisos infantis triunfam e ficam gravados na memória. Só então me lembro de que a fotografia foi tirada durante uma tarde de verão indistinta na cidadezinha de Passo Fundo, um local de nome aqui apropriadamente remoto. Dou-me conta de que a representação da felicidade na imagem, que agora é uma preciosidade, é curiosamente resultado dos dias passados à toa, de calção de banho e descalços sobre um pátio de pedras molhado.

E então sorrio de novo.

-2016