Livro-instalação (2018)
Sobre o trabalho
Prefiro rir foi um trabalho desenvolvido durante uma residência de um ano no programa de formação da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. O projeto teve início a partir de uma provocação de uma das facilitadoras da residência que pediu que escrevêssemos uma carta para uma interlocutora no passado. Escrevi uma carta para minha mãe. Nela, eu contava que havia descoberto a caixa que ela guardava em um armário de sua casa, uma caixa com dezenas de cartas, fotografias e um diário que ela escreveu em minha voz durante meu primeiro ano de vida. A partir da descoberta deste arquivo e da escrita desta cara, trabalhei com esse material para traçar um paralelo entre esse momento no passado em que o filho surge, e o momento do presente em que a mãe desaparece aos poucos por conta de uma demência.
Executado em uma grande variedade de mídias (texto em prosa e verso, digitalizações e recortes de documentos, imagens e vídeo), o trabalho foi exposto na exposição Formação e Deformação na EAV Parque Lage em 2018. Este livro-instalação deu origem ao romance Triste não é ao certo a palavra, publicado em 2023 pela Companhia das Letras.
Trecho do trabalho
Rio, 8 de janeiro de 2018
Hoje encontrei o caderno. Encontrei o caderno no fundo do armário, por acaso, enquanto você assistia televisão deitada na cama depois de jantar. Nas tuas letras geométricas marcadas pelo ofício de arquiteta li a primeira anotação nesse diário, o diário do meu primeiro ano de vida: “Nasci às 21:15h com 3,650kg e 50cm de comprimento”. Leio essa e outras entradas cotidianas nas páginas amareladas pelo tempo. O registro da primeira vez que sorri, de um dente que despontou antes da hora, do doutor que disse que faço parte do grupo de 10% dos bebês mais altos do país. As palavras são tuas, mas quem fala sou eu. Encontrei o caderno guardado no fundo do armário e nele essa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, em que você evoca minha primeira subjetividade, e eu lhe outorgo a experiência materna e uma nova identidade. Leio minhas próprias memórias e acho que consigo te escutar, como se você falasse de mim, para mim, a partir de mim, como se ainda habitássemos um mesmo corpo. Leio e acho que escuto a tua voz, uma voz de que já não me lembro mais. Daqui decidi escrever esta carta que agora te envio para te restituir da fala que você perdeu. Escrevo e te envio essas páginas porque quem está aqui comigo não é mais minha mãe e porque daqui não enxergo mais as interseções entre o teu corpo e a tua mente. O corpo hoje é um corpo assistido, passivo, pedindo socorro, é um corpo alimentado, asseado, exercitado à força. Tua mente ficou na memória dos outros e hoje só se manifesta em resquícios, como nas poucas vezes em que você sorri e me pergunto se é a última vez. Ou ainda quando você, andando pela casa à tarde, para ao lado da porta do meu antigo quarto e arrisca a cabeça para dentro, em busca de qualquer lembrança. Em algum canto recôndito da memória você sabe o que se passou aqui, você intui que dentro desse pequeno espaço assistiu sua cria crescer. Mas com a mesma casualidade com que procura, curiosa, algo que lhe pertença, abandona logo essa busca inútil e segue seu vago caminho. Escrevo e envio essa carta para o momento de meu nascimento, em 1993, buscando o resgate de uma personalidade esvaída. Quem é você? Ou talvez já, quem foi você? Você ainda é? O que te define então é a tua sanidade, as tuas faculdades mentais, o teu ofício de arquiteta, teu papel de mãe? Ou só você aqui, sentada, olhando para o nada, para tudo, como uma criança que, como eu, acaba de nascer? Te escrevo no momento de meu nascimento para dizer que encontrei o caderno no fundo do armário e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso. Em outra linha no antigo diário, encontro: “Estou danado, parece que comecei a descobrir o mundo de uns dias para cá. Entendo tudo o que falam comigo, se não sei alguma coisa é só me mostrar que não esqueço mais. Falo muito, uma língua que só eu entendo.” Pergunto-me se você realmente não compreendia essa minha língua. Se ali, enquanto você registrava diariamente minha descoberta do mundo, já não ouvia, na tua própria voz, a minha. Se hoje não está, nesse mesmo idioma em comum, nossa única possibilidade de um diálogo. Escrevo e envio essa carta para você para tentar encontrar, em minha própria voz, a tua.








