O homem-antídoto

“Meu pensamento me abandona em todos os níveis. Do simples fato do pensamento até o fato exterior de sua materialização nas palavras.”[i]

As palavras de Artaud ressoam dentro de nossas caixas torácicas como se nascessem de nossas próprias entranhas. O poeta desacreditado não poderia ter imaginado a atualidade de seus versos no mundo de hoje. Ou talvez sim, tão certo sempre esteve da necessidade de se criar um pensamento outro – para ele, um pensamento do corpo. Pois é no corpo de hoje que as suas palavras reagem, irrompendo em grandes escoriações, erupções anormais espalhadas pela pele, justamente o limite entre o corpo de fora e o corpo de dentro, entre o inorgânico e o orgânico. É essa capa sensível – às dores, aos choques, aos traumas –, é esse tecido que nos envolve e protege que hoje é consumido por uma grande inflamação, talvez a mesma que tenha levado Artaud ao esgarçamento voluntário da própria pele. Nesse estado de afogueamento, sentimos também que nosso próprio pensamento nos deserta, deixando-nos à mercê de um sistema esterilizante e triturador, que nos furta a fala de maneira ardilosa, calando-nos. Artaud foi exemplo vivo desse procedimento[ii]. Era subproduto do projeto de humanidade europeu, a escória, a sobra da criação do ideal do homem branco, ideal refletido à sua própria imagem, mas ao qual mesmo assim não se subjugou. A voz de Artaud – aguda, estridente, desconfortável – foi sistematicamente abafada, mas ela se fez escutar e ainda ecoa na contemporaneidade, pois denuncia, desde que foi entoada em suas cartas com Jacques Rivière, um jogo de forças que coloca todos nós em constante xeque. Artaud esteve sempre em risco, sempre sobre uma linha tênue entre a razão e a irracionalidade, no limite da “loucura”, único lugar onde podia viver as experiências necessárias para criar um pensamento para o corpo, uma nova linguagem da carne. Essa sua voz destoante, quando manifestada pelos ares de Dublin em 1937, por fim selou seu destino como “caso clínico” dentro do sistema médico-legal, deslocando-o à força para fora do entre-lugar sanidade/loucura e o sentenciando, oficialmente, à condição de indivíduo anômalo, pertencente ao asilo psiquiátrico, onde passou confinado grande parte de sua vida. A potência de Artaud era uma ameaça à matriz do pensamento ocidental: sua experimentação com o corpo não se subordinava à supremacia hierárquica da mente, sua procura por zonas de contágio com o povo Tarahumara infectava os processos de assepsia generalizada na modernidade, seu testemunho acerca da experiência da magia fugia à lógica do pensamento cartesiano. Artaud era o agente patógeno subversor da ordem estabelecida, o próprio diagnóstico de seu tempo, um sintoma que evidenciava o mal do século (o triunfo máximo e subsequente derrocada do projeto de homem branco europeu durante a primeira metade do séc. XX).

A radicalidade da obra de Artaud está na dedicação da sua vida ao seu trabalho e vice-versa: toda sua existência serviu ao propósito de se imaginar uma outra forma de pensamento. É à essa alternativa além do horizonte de expectativas no mundo contemporâneo que dedicamos nossa leitura de Artaud, cada dia mais importante. A atualização dos seus escritos está situada hoje por novos movimentos desorganizadores da “ordem”, insurgências que abordam questões – principalmente de identidade – há muito tempo silenciadas no Brasil. O silêncio daqueles na posição de subalternos, imposto como condição para sua coabitação com as formas de vida hegemônicas, começa a ser quebrado. Os dispositivos de controle por violência, perpetrados desde nossa colonização até hoje, são cada vez mais deflagrados. Saberes alternativos e outras formas de vida emergem com uma potência capaz de interrogar os saberes e formas tradicionais. Torna-se mais e mais evidente a lógica do capitalismo cruel de viés neocolonial instaurado neste país à qual ainda tantos são submetidos pelo benefício daqueles no poder. Essa movimentação do corpo político é inédita no Brasil[iii]. Nossa fundação cultural apoia-se principalmente no mito antropofágico, ou seja, na digestão de elementos culturais estrangeiros (em sua grande maioria, europeus) para a formação de uma identidade própria. Essa tradição é fruto de um processo de colonização muito bem-sucedido, cujas evidências permaneceram ocultas por longo tempo entre nós sem que nos ocupássemos em saber do que era feita a argamassa dos pilares do estado de natureza social brasileiro. No contemporâneo, esse carácter neocolonial das formas sociais que ditam nossas vidas começa a ser revelado, mas nossa herança canibal persiste em forjar um senso de unidade cultural por meio da assimilação de outras culturas, resultado de uma relação de proximidade muito grande com o agressor. O Brasil nunca parou para se pensar. Em um cenário global de desesperança e polarização, onde poucos povos podem apoiar-se em uma ideia firme de comunidade, ficamos à mercê da nossa ignorância. O fim da narrativa na modernidade[iv] – a incomunicabilidade da experiência e subsequente impossibilidade de construção de uma tradição comum – nos rende completamente sós, cada um por si em um mundo constantemente irreconhecível e inexplicável (BENJAMIN, 1985b). Essa falta de uma ligação com o passado, ainda mais perversa no Brasil, impossibilita qualquer sentimento de pertencimento, tornando-nos dependentes apenas de nós mesmos em um mundo cada vez mais individualista e, portanto, competitivo – ideais que cumprem muito eficientemente a agenda do capital. Os novos movimentos de natureza fascista no país surgem justamente como resposta a esse estado de desamparo generalizado, uma solução que supre, artificialmente, essa deficiência, atraindo indivíduos solitários com um discurso de forte cunho comunitário e identitário.

Essa sucumbência a alternativas violentas já estava prevista. Havíamos sido alertados sobre o perigo da ausência de uma “válvula de escape”, da importância clínica da experimentação controlada de um estado de desregramento, uma pequena violência constitutiva[v] em prevenção a uma violência maior (MAFFESOLI, 2004). Essa não seria apenas uma prática purgatória – pois neste sentido estaríamos somente perpetrando a eliminação higienista das “impurezas” –, mas sim um exercício de contato com as faces mais subversivas da vida, uma exploração dionisíaca pelos espaços “grotescos” da nossa existência. Tal acesso habitual aos conteúdos mais “indecentes” da experiência humana como ato libertador não é algo novo: estava presente no nonsense da narração da viagem de Alice pelo “submundo” de Lewis Carroll, nas peripécias escatológicas de Gargântua e Pantagruel nos escritos do renascentista Rabelais, nas terríveis histórias sobre esquartejamentos, canibalismos e estupros nos macabros contos de fada tão abundantes na matriz do pensamento medieval. São essas manifestações literárias que nos possibilitam uma maior comunicação com os componentes primitivos da nossa psique, aqueles já tão processados pela máquina que censura e controla os seus conteúdos mais “assustadores”, que subtrai a indelével imagem da avó e sua neta sendo devoradas por um lobo sagaz ao resgate do lenhador, ou ainda que diminui a dolorosa rivalidade fraternal de Borralheira à uma insípida história sobre um desencontro amoroso. As versões originais de Perrault e dos Irmãos Grimm intentam, na realidade, um ensinamento, uma contribuição à edificação da moral, uma forma de terapêutica espiritual que é passada oralmente de geração para geração. Tão essencial, portanto, a exposição à essas narrativas durante o período da infância, único momento na trajetória da vida em que há uma aceitação quase instintiva da duplicidade, da inversão, da metamorfose, da fantasia. É essa receptividade do “outro” como solo fértil para a formação humana que é tragicamente desperdiçada quando colocamos as crianças em um lugar de desprestígio no contexto social, privando-as dos elementos negativos da vida – a dor, a perda, o fracasso – e condenando-as (e a nós mesmos como espécie) à inevitável decepção.

Todos carregamos, entretanto, um resquício dessa capacidade inata, o vestígio de nossas vozes infantis, ingênuas, puras, livres, que merecem e precisam ser entoadas na contemporaneidade. A importância de Artaud para o presente é sua capacidade de evocar essas vozes deflagradoras, mesmo que sua propagação seja cada vez mais penosa. Ainda não há, efetivamente, uma mudança epistemológica em nossa construção social, mas o momento de esgotamento geral demanda o grito. O clamor que começa a se espalhar pelos ares é a súplica que há muito vem guardada dentro do peito ofegante. É o berro que transgride à extirpação generalizada dos elementos “menores” e, portanto, não condizentes com a estrutura dominante. É difícil se encontrar espaço para o grotesco, o estranho, o inferior ou o mágico na lógica binária do capital que comanda o mundo da maneira mais rentável possível. Mas a resiliência do poeta francês serve de inspiração para que sigamos tentando – nos colocando em zonas de disponibilidade a acontecimentos que nos reaproximem de um estado mais primordial da existência, que possibilitem atravessamentos que perfurem nossos corpos docilizados, que nos remetam às origens selvagens de nossas vidas domesticadas. Talvez tomando o exemplo de Artaud como essa possível “homeopatia do mal”[vi], como esse grande produtor de anticorpos, encontremos formas de estabelecer novas relações com as estruturas de poder vigente. No fim, é o bramido catártico de Antonin que retumba sobre todos os outros, renovando-nos as esperanças em meio ao desconhecido:

“O que é grave
É sabermos
que atrás da ordem deste mundo
existe uma outra
Que outra?
Não o sabemos.
O número e a ordem de suposições possíveis neste campo
é precisamente
o infinito!”[vii]

-2016

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad.: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 188p.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ______. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985a. p. 114-119.

______. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985b. p. 197-221.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad.: Arlene Caetano. 16a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. 176p.

KIFFER, Ana. Antonin Artaud. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2016. 266p.

MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo. Trad.: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. 162p.

Notas

[i] ARTAUD, Antonin. Oeuvres complètes I. Paris: Gillimard, 1994. [pp. 24-5]
[ii] Tomo como ponto de referência para minha discussão de Artaud os ensinamentos da professora Ana Kiffer em seu curso Os limites do literário, ministrado na PUC/RJ em 2017.1.
[iii] Faço aqui referência à aula do professor Alexandre Mountaury acerca do corpo político no Brasil, ministrada em 25/05/17 como parte dos seminários do curso Os limites do literário, ministrado pela professora Ana Kiffer na PUC/RJ em 2017.1.
[iv] Baseio-me, para a discussão sobre o fim da narrativa e do senso de comunidade na modernidade, nas aulas do curso Estratégias de leitura, ministrado pela professora Mariana Patrício na PUC/RJ em 2017.1.
[v] Adoto, como ponto de partida para a discussão acerca da importância de tais “estados de desregramentos”, o curso A atualidade dos clássicos, da professora Flávia Vieira, ministrado na PUC/RJ em 2017.1.
[vi] Conceito utilizado pela professora Flavia Vieira durante o curso A atualidade dos clássicos, ministrado em 2017.1 na PUC/RJ.
[vii] Texto-poesias retirados de uma transmissão radiofônica intitulada “Para acabar com o julgamento de deus”, realizada por Artaud (como autor e narrador) e por alguns de seus amigos (Roger Blin, Marie Casarès e Paule Thévenin), que além de narrarem o ajudaram na produção dos efeitos sonoros durante a transmissão.

Na presença de Marina

Atravesso o Hyde Park pelos seus caminhos de areia com as mãos enterradas nos bolsos. É verão em Londres, mas faz frio às 8 da manhã desse sábado. Caminho a passos largos, não quero me atrasar. Já deve haver uma fila na porta da Serpentine a essa hora, portanto não deixo que a cantoria dos pássaros que agora acordam prenda a minha atenção. Os imensos carvalhos vitorianos por todos os lados me confundem o caminho e demoro mais do que havia planejado. De qualquer maneira, às 9 da manhã em ponto estou na entrada lateral da galeria. Para minha surpresa, sou um dos primeiros. Depois de um “good morning” cordial, apoio-me em uma das barricadas dispostas ao redor do prédio e espero pelo momento em que a exposição Marina Abramovic: 512 Hours abrirá suas portas.

Eu conheci o trabalho de Marina pelo documentário Marina Abramovic: The Artist is Present (Akers & Dupre, 2012), que seguia a preparação e execução da última grande obra da artista, de mesmo título. Foi a primeira vez que ouvi falar em seu nome, mas na época Marina já era há tempos considerada a “avó da arte performativa”, estilo em que, dentre outras definições, o artista usa seu próprio corpo como objeto. Talvez minha ignorância se desse justamente pela característica de sua obra que Marina mais critica: a categorização de sua forma como alternativa. O seu status marginalizado havia me privado do conhecimento do trabalho da artista. Logo no começo do documentário percebe-se que o estigma havia acompanhado sua criação desde sua primeira performance em Edimburgo em 1973 (Rhythm 10, 1973), ainda então uma jovem recém-saída de seu natal Belgrado, até à mostra retrospectiva de toda sua carreira apresentada pela Meca da arte moderna, o MoMA (The Artist is Present, 2010). Marina regozijava o fato de ser finalmente “levada a sério” após 40 anos sendo considerada uma insana digna de um manicômio. Mesmo assim, era difícil deixar de perceber a perplexidade do público face aos vídeos que mostravam as performances passadas da artista, ou ainda frente aos outros artistas participantes da mostra que reencenavam as cinco maiores obras de Marina pelos andares do museu, grande parte delas feita em parceria com Ulay, o artista alemão com quem manteve um relacionamento tão dramático quanto suas performances juntos. A exposição passava pelos vários momentos de Abramovic nos passados 40 anos: desde sua predileção por desafiar seus próprios limites físicos e mentais, quando chegou a gravar uma estrela no abdômen usando uma gilete, até seu maior foco em interagir com o público, como na exposição no MoMA, em que artista sentou por dois meses e meio durante os horários de abertura do museu em uma cadeira frente a qual os visitantes, um por um, podiam sentar-se e, pelo tempo que quisessem, ficar na presença de Marina. Comum a todas essas diferentes explorações das possibilidades do corpo e da mente, Abramovic sempre tentou desbravar a relação entre artista e público. O preço pago durante toda sua carreira foi ouvir sempre a mesma pergunta: por que isso é arte?

Alguns instantes, somos quarenta e tantos, e eis que pela porta de vidro da galeria posso ver Marina. Instantaneamente, ela se torna real. De blusa branca e trança presa, ela passa um pouco de perfume atrás de cada orelha, vai em direção à entrada, abre as portas e nos dá as boas-vindas. Um a um, apertamos sua mão. As delas são grandes e ásperas, como espera-se que sejam as de um artista. Os olhos de Marina são intoxicantes e sinto que a conheço. Num indefectível sotaque sérvio, me dá bom dia em sua voz acalentadora. Os recepcionistas pedem que guardemos todos os nossos pertences nos armários próximos à entrada, bolsas e mochilas, câmeras e celulares, até nossos relógios – a noção de tempo ali é proibida. Nos dão um fone de ouvido, daqueles usados por funcionários de aeroportos que trabalham na pista junto às turbinas estridentes dos aviões. Mergulhado em silêncio, sigo adentro da Serpentine. A galeria tem uma sala principal, na qual diversas cadeiras estão dispostas na forma de um quadrado, dentro do qual há um pequeno tablado onde 8 ou 10 artistas meditam em um círculo, todos de preto e olhos fechados. As duas salas adjacentes estão vazias. Logo, os visitantes começam a se sentar nas cadeiras disponíveis, assumindo o papel da plateia. Eu prefiro ficar de pé, no fundo da sala. Marina também está conosco, aqui e agora, mas não faz nada além de observar os outros a observando. A luz da manhã entra por imensas janelas e todo o interior do prédio é coberto por um branco desnorteante. Não há nenhum quadro, nenhum objeto, nenhuma arte. Só eu, eles e Marina. Os olhares hesitantes dos outros visitantes me confirmam: não sou apenas eu que não sei o que está acontecendo. No entanto, ninguém aparenta estar intimidado. Pela falta de qualquer ação, parece que tudo pode acontecer. É então que vejo Marina caminhando em minha direção. Mal consigo conter a histeria do meu coração quando ela me oferece um grande sorriso e as palmas de suas mãos como quem diz “vem comigo?”

A dificuldade de grande parte do público em ver o trabalho de Abramovic como arte não é um desafio exclusivo das artes de performance. Muitos dos precursores da arte moderna sempre tiveram a validade de suas obras questionadas pelo nosso senso crítico. “Até eu poderia ter feito isso!”, clamam centenas todos os dias pelos museus e galerias do mundo em desafio ao cubismo desajeitado de Picasso, ás formas abstratas de Kandinsky, ao surrealismo confuso de Miró. Ainda mais ferrenhas são as críticas àqueles que parecem até estar tirando um grande sarro conosco, como Duchamp e seu mictório, Pollock e suas telas explosivas, ou Warhol e sua sopa de tomate. Indagamo-nos a respeito do motivo daquelas obras serem consideradas primas, de estares sendo expostas em tão respeitadas instituições, de serem consideradas imperdíveis por todos os guias que usamos para planejar nossas viagens. Sentimos que a simplificação foi levada ao extremo e nos frustramos com a aparente falta de técnica e esforço dos artistas, cujos quadros, esculturas e instalações pagamos para conhecer e cujo mérito, se não identificado por nós mesmos, nos faz sentir como analfabetos artísticos. Eu também fiquei perplexo assistindo a vídeos de Marina e Ulay dando tapas na cara um do outro. No entanto, ao invés de descartar aquela cena como lixo, me dei a chance de pensar por um momento em qual seria a mensagem ali transmitida. Se há de se haver algo querendo ser expressado em todas essas obras, não devemos a nós mesmos a oportunidade de analisá-las? Os grandes movimentos artísticos ocorridos desde o final do século XIX têm em comum o ânimo para desafiar o status quo e sua incapacidade de responder às nossas necessidades expressivas. Por terem quebrado tradições confortáveis, muitos desses artistas tiveram seu trabalho depreciado por seus contemporâneos.  O Impressionismo de Manet e seus refusés não tinham espaço na Academia Real de Pintura e Escultura francesa; Gauguin, van Gogh e Cézanne foram todos vistos como excêntricos perturbadores da ordem que não chegariam a lugar algum; Matisse teve suas cores contrastantes ridicularizadas pelos críticos como fauves, bestas selvagens cujo habitat não podia ser o Salon d’Automne. Sua arte era hostil e suas inovações incompreensíveis, mas elas satisfaziam um desejo incontrolável de se libertar da representação fiel do objeto e de ter a chance de expressar sentimentos confusos e misteriosos além do óbvio e tacanho. Da mesma forma, o contemporâneo continua lavrando essa multiplicidade artística que cultiva as mais diferentes interpretações da experiência humana. O mérito do moderno e do contemporâneo está justamente em suas possibilidades, e o de Marina, em explorá-las. É provável que ao invés de, intimidados pelo incomum, a taxarmos como selvagem, seja mais enriquecedor tentar entender seu trabalho como a exploração das questões que o definem.

Mãos dadas, Marina me leva a uma das salas laterais da galeria e faz um sinal para que eu tire os meus fones de ouvido, o que ela já fez. “Tudo bem?”, me pergunta. Digo que sim com a cabeça e ela segue falando em um sussurro quase secreto: “sua tarefa de hoje será andar em slow motion. Quero que você atravesse essa sala andando o mais devagar possível, por sete vezes. A repetição é importante, pois nas primeiras vezes seu corpo estará devagar, mas sua mente continuará como uma Ferrari. Quero que seus pensamentos se movam na velocidade de seu corpo. Vamos, a primeira travessia faremos juntos.” Recolocamos nossos fones, ela pega-me novamente pela mão e juntos atravessamos a comprida sala em passinhos. A cada um deles, eu sinto o peso do meu corpo sustentado por meus pés. Sinto a minha pressa ser calada pelo controle de Marina, que me segura quando estou rápido demais. Toda minha atenção está em controlar meus passos, deixo de lembrar que Marina Abramovic está ao meu lado, segurando minha mão. Toda sua celebridade não tem espaço nesse momento, somos só eu e ela. Marina logo me deixa para que eu continue sozinho e a lentidão dos meus movimentos entorpecem a minha consciência. Sinto-me em um transe e chego até a duvidar de que conseguirei parar após o fim da tarefa. Consigo, e levantando a cabeça me deparo com outras dezenas de pessoas imersas em suas atenções.

Marina sempre defendeu a ideia de que a essência da performance é o estado de espírito do performer. Para que o artista seja física e mentalmente capaz de ficar horas sem se mover sentado em uma cadeira, por exemplo, é essencial que ele entre em um outro plano de sua consciência, um estado meditativo em que tédio, dor e desejo homogeneízem-se em ruído de fundo. Marina entende os benefícios que essa desaceleração da mente pode trazer àqueles que a praticam e tenta dividi-los com seu público. Na verdade, todo seu radicalismo reduz-se simplesmente a questões metafísicas que permeiam a nossa existência. Por que é que damos mais valor à arte que consideramos bela? Por que nos sentimos tão incomodado em ver seres humanos comportando-se como selvagens? Por que é que nos incomoda tanto ficar sem fazer nada? A reputação de Marina traz quase um milhão de pessoas ao MoMa e, estando em sua presença, vemos a estranheza perante o incompreensível transformar-se em experimentação ontológica. O documentário sobre a exposição de Marina em Nova York mostra muitos dos visitantes chegando às lágrimas durante o seu tempo com a artista. O sentimento, ela explica, vem do fato de que, a partir de certo ponto, a performance não se trata mais de Marina, mas sim da pessoa que está à sua frente. Despindo-nos de quaisquer elementos que nos são familiar, como o tempo, Marina torna-se um espelho de nós mesmos, cujo reflexo não estamos acostumados a ver. A renúncia das qualidades supérfluas que nos definem como homens e mulheres de nossa época cria um vácuo no qual tornamo-nos seres elementares, presentes de corpo e alma. É nessa ausência criada por Marina que encontramos a sua, e logo a nossa, presença. A experiência é efêmera, porém preciosa, pois nos usando como objetos nos revela uma fração da natureza humana. E como questionaria Klaus Biesenbach, curador do MoMA durante a exposição de Marina, o que é a arte além disso?

Sigo para a última sala, onde os visitantes participam de uma outra atividade. Na entrada, um ajudante me entrega uma venda e me ajuda a amarrá-la sobre meus olhos. Entro em uma total escuridão de sentidos. Caminho quase tão devagar quanto à maneira de Marina, braços estendidos tateando o breu. O espaço agora é imenso, a ausência não tem limites. Perdido no nada, sinto cada vez mais evidentes os confins do meu corpo, as fronteiras do meu ser. Torno-me fortaleza, existo sozinho e seguro. De repente, pele. O toque é elétrico e excita a curiosidade. As mãos logo se procuram e os dedos se entrelaçam. O afeto é anônimo, mas comum e palpável. Presenciamos um ao outro. Detenho-me naquele novo universo por muito tempo até que decido voltar a ser quem penso que sou. A caminho da saída ainda enxergo Marina entre muitos outros em pé no tablado, agora todos dispersos, no que parece uma profunda autocontemplação. Deixo os meus fones de ouvido na recepção, pego minha mochila e saio pela porta por onde entrei. A respeitável natureza inglesa rebenta em verde nos meus olhos e eu já escuto o barulho dos carros em Knightsbridge.

-2016

C. de Ana

Ana C. é, até mesmo em seu nome, uma figura enigmática. A letra inicial do nome do meio, abreviada logo ao lado do prenome que divide com tantas outras, a destacava sem muito relevar de sua identidade. Era o C de seu Cristina, de seu Cruz ou de seu Cesar que Ana gostava de trazer junto à assinatura de seus poemas? Não fui capaz de achar resposta. Nem um nem outro eram segredo, Ana não vivia no anonimato, mas ainda assim a poeta preferia guardar para si mesma a intimidade completa de um segundo nome, mantendo-se parcialmente junta à todas as outras Anas, como em uma chamada escolar onde viria, depois de Ana B. e antes de Ana D., levantar a mão despercebidamente. Tanto de si mesma Ana mostrava em sua poesia, era como se quisesse também se esconder do mundo na medida do possível. É essa vontade contra-intuitiva de ocultar-se e revelar-se que vejo nas fotografias em que ela pousava com seus grandes óculos escuros, no seu semblante meditativo, no olhar provocador. É o que leio em seus versos inacessíveis, em sua sintaxe desconexa, em sua poética melancólica. É também o que sinto em visita à exposição sobre a autora na Caixa Cultural, intitulada À Mercê do Impossível. A mostra, que trouxe ao público grande parte do acervo de Ana, preservado hoje pelo Instituto Moreira Salles, teve refletida em sua montagem essa imagem misteriosa da escritora. O ambiente todo penumbrado, as relíquias de sua vida privada fora de seu contexto, seus versos escorridos por cumpridas lonas sombreadas que desciam do teto. Ana C. estava exposta, porém ainda, de certa forma, desconhecida. A presença de seus objetos pessoas indicavam que essa aura impenetrável, distinta em sua obra, caracterizava também sua vida privada. Nos depoimentos dos amigos e conhecidos, Ana é sempre descrita da mesma forma: uma mulher excepcionalmente bela, notadamente inteligente, tímida. Falam repetidamente de suas múltiplas personalidades – melhor ainda, das diversas personagens que incorporava ao próprio gosto, as diferentes peles “de menininha, de fatal, de senhora, de tímida, de distinta, de cafajeste”[i] que Ana vestia conforme o estado de seu humor ao ponto de, talvez, nem ela mesma saber qual aquela que melhor lhe caía:

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?[ii]

Há, no entanto, elementos da memória de Ana que refutam sua fama de enigmática, apresentando-nos a autora como alguém a quem tal clichê não faz jus. Ana fora também estudante de letras da PUC-Rio nos anos 70 e, portanto, contemporânea daqueles que integravam a chamada “Geração Mimeógrafo”. O equipamento copiador pré-xerox era a imagem representante do estilo daqueles que tentavam aproximar a poesia dos leitores, “democratizando” a escrita por meio da distribuição em massa de seus textos pelas ruas da cidade.  O uso da linguagem coloquial e o tratamento dos assuntos da cotidianidade, empregados em uma estética incomum na época, rendeu a esses jovens a alcunha de “marginais”, escritores à margem da corrente principal da literatura. Escreviam em uma época conturbada, em plena ditadura militar, sob a repressão da censura, e talvez por isso mesmo insistiam em revelar a beleza escondida no dia-a-dia, as preciosidades efêmeras do momento presente. Ana C. era desses, de dissecar suas aflições diárias em recortes da sua experiência existencial. Mesmo assim, parecia se destacar de seus pares, firmando-se em um outro lugar. Ana C. era ou não marginal? Amiga e organizadora da ontologia 26 Poetas Hoje, que reunia pela primeira vez, em 1975, os escritos daqueles autores, Heloisa Buarque de Hollanda confirma que também neste sentido Ana mantinha-se ambígua: pertencia àquela geração de escritores, nutria relações afetivas com eles, fazia parte da turma e, ainda assim, suas palavras destoavam das do grupo. A literatura da geração dos anos 70 identificava-se com o movimento da contracultura, buscava abrir novos caminhos, experimentar fazer-se descartável, improvisada, e, como colocaria um de seus maiores expoentes, Chacal, estava interessada em “fazer um pacto com a revolução, e não um diálogo com a tradição.”[iii] Por outro lado, a poesia de Ana Cristina era, em suas próprias palavras, “muito construída, muito penosa”, meticulosamente planejada e frequentemente reescrita, indicando uma maior preocupação estética, uma escrita mais literária, um flerte com a tradição, justamente o que os marginais rejeitavam.

Esse entre-lugar habitado pela poeta confirma sua singularidade. A escrita de Ana possuía muitas das características pertencentes também a seus conterrâneos, mas sua formação havia sido diferente. Mostrara o interesse pela escrita desde a mais tenra idade; fora, ainda adolescente, fazer intercâmbio na Inglaterra, de onde retornou leitora de escritoras como Sylvia Plath, Emily Dickinson e Katherine Mansfield; formou-se em letras e fez mestrado em comunicação; retornou à Grã-Bretanha para a pós-graduação em teoria e prática de tradução literária na Universidade de Essex; trabalhou como tradutora, jornalista, crítica literária. Ana estabelecera um diálogo com uma outra tradição, outros textos, outra cultura. Pensar as peculiaridades da sua escrita é entender essa mistura única de influências às quais a escritora foi exposta. Aqui é válido resgatar o conceito de intertextualidade tanto explorado por Bakhtin, Kristeva e Genette. O que esses pensadores se dedicaram a pesquisar foi justamente a troca existente entre os diversos interlocutores selecionados por cada leitor, aqueles autores com os quais escolhemos entrar em diálogo, cujas escrituras edificam a nossa própria escrita. O discurso, defende Kristeva, não é nada mais que uma “bricolagem” de retalhos entre o texto do mesmo e os textos dos outros, além do texto social e histórico (portanto nosso contexto cultural). A própria imagem usada por Genette para intitular seu principal trabalho, Palimpsestes, é a do Palimpsesto, esse papiro cujo texto é apagado para que ele possa ser reutilizado, mas que fica marcado pelas inscrições que foram algum dia ali gravadas. É ali, em meio à incorporação de um elemento discursivo ao outro, que se dá, como posto por Leminski, essa “telepatia com todo um passado” que é a literatura.

Ana C., por esse ponto de vista, construiu uma subjetividade que resulta em uma estética literária muito particular. A autora vem sendo cada vez mais discutida – sua exposição na Caixa Cultural foi a primeira no país a ser inteiramente dedicada a ela, e sua obra foi o foco da edição de 2016 da FLIP. Todos os seus escritos foram compilados pela Companhia da Letras no livro Poética e ela ganha cada vez mais uma posição de destaque nas livrarias brasileiras. “À luz de spots”[iv], Ana vem cada vez mais sendo descoberta, mesmo que se mantenha sempre misteriosa.

-2016

Referências:

 ALÓS, A. Texto literário, texto cultural, intertextualidade. Revista Virtual de Estudos da Linguagem–ReVEL. Vol. 4, n. 6, mar. 2016

Ana Cristina Cesar. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/YpNN0Y>. Acesso em 30 mai. 2017.

LEMINSKI, P. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.

MORICONI, I. Um passeio pelo baú de Ana Cristina Cesar, a poeta homenageada da Flip. Folha de São Paulo, São Paulo, jun. 2016. Disponível em <https://goo.gl/KsDRiT>. Acesso em 30 mai. 2017.

SIMÕES, L. Bruta Aventura em Versos. [Filme-vídeo]. Produção de Matizar Filmes, direção de Letícia Simões. 2011. 76min. color. son.

Notas

[i] Trecho da entrevista com Heloisa Buarque de Hollanda, do documentário Bruta Aventura em Versos (2011)
[ii] Trecho do poema “Soneto”, de Ana C.
[iii] Trecho da entrevista com Ricardo Chacal, do documentário Bruta Aventura em Versos (2011)
[iv] Trecho do poema “Samba-canção”, de Ana C.