cortina

Hoje a chuva acortina a vista do meu quarto e eu fico preso na Terra. Ela acortina também a minha alma, e eu fico preso na minha angústia não dita. E finalmente, antes de fechar minha janela, ela acortina o saber do meu querer e eu fico preso no escuro da minha desesperança.

-2013

Suspiro

Não sei quem sou. Não sou herói. Não sou gente grande. Não sou bem formado. Não sou educado. Não sou poeta. Não sou mascarado. Não sou magistrado. Não sou ministro. Não sou presidente. Não sou competente. Não sou indulgente. Não sou gente também não. Não sou pouca coisa. Nem muita coisa também. Também pode ser negativo? Não sou de ter dúvida. Me contradigo. Sou de ter dúvida. Não sou professor. Não sou certo. Não sou errado. Não sou seco nem molhado. Não sou quente nem frio. Não sou pouca esperança pra coitado qualquer. Não sou o projeto de um grande homem. Não sou um prospecto. Não sou uma mera visão. Não é comigo que se ganha teu pão. Não sou cavalheiro. Não sou escritor. Escrevo de sacana, de gozação ao senhor. Não m’ofereça a hóstia, porqu’a mastigarei. Não me ofereça. Não reze a prece comigo. Não sou orador. Não me dê o castigo. Não me mostre pudor. Fique bem sem vergonha. Não gosto de ninguém. Não me faça de mestre. Não me faça de obediente. Me livre os dedos. Me livre as mãos. Me cegue os olhos. Me entorpeça a consciência. Me venere. Me obedeça. Me ordene. Me mostre o caminho. Me responda a pergunta. Me fale o que eu quero ouvir. Não escreva, não quero ler, fale, que é melhor. Não me cale o medo, deixe que me engula. Não tenho cura. Não me cure venha a acha-la, que eu temo a sanidade. Me ache jogado e me deixe no chão. Me jogue no poço e o feche com gosto. Não me conte mentira nenhuma. Me minta só se for sobre o tempo. Não me faça mais nada. Me trate de bem. Me ame descarada, que eu também já não tenho mais cara nenhuma. Me caíram as máscaras e as más caras, que caiam as tuas também. Desmascare a coitada. E se acabarem as máscaras, que cubram o rosto com a mão. E se tiverem angústia, cubram com o coração. E se estiverem com ânsia, cubram c’uma paixão. E se estiverem com raiva, cubram com um vilão. E se estiverem pelados, cubram com um calção. Farei limonadas! Mas agora chupo só o limão. E estou no bagaço. E como a casca. E engulo as unhas. E digiro os dedos. E mastigo os punhos. E percebo que já comi-me os braços inteiros. Me ame! Me ame alto e sem caráter. Não recite tua paixão, só a grite para mim. Afinada, de preferência, que já estou velho para qualidade pouca. Não se importe comigo. Me deixe num canto. Me deixe quietinho. Não me faça carinho. Me deixe sofrer. Me deixe passar frio. Não quero teu corpo. Me deixe com fome. Não me peça socorros. Não posso ajudar, o máximo que consigo é deixar ser ajudado. Não alegue egoísmo. Não proclame loucura. Não se desespere, você não me perdeu. Também nunca me ganhou. Sou assim, desgrenhado, desprendido, desacertado, desiludido, descentralizado, excomungado de nascença. Batizaram minha testa, não sou má influência. Minha fluência que é má. Me ensine teu idioma, que o meu já não me deixa em paz. Me persegue e atormenta. Me maltrata. Me amordaça. Quanto mais o domino, mas dominado por ele fico. Não me ponha uma máquina na frente. Não sei o que sou capaz de fazer. Não me leia esta merda, foi somente um suspiro meu. Suspire você também. Bem aqui, no meu pescoço. Suspire firme e quente, suspire toda a tristeza e vontade que guarda dentro de si. Suspire as mágoas, as invejas, os sonhos. Suspire aquilo que lhe faz acreditar não ser humano. Suspire o monstro. Suspire aquilo e só aquilo que suspira na cama, no escuro, sozinho e afogado. Suspire o que não suspiraria nem a si mesmo. Suspire o insuspirável. Suspire tudo. Somente então me acalmarei. Somente então me poderá chamar de louco. Porque somente então saberei não só a minha loucura, mas também a loucura dos outros. Somente então saberei ser feliz e infinito. Somente então me poderá tirar do canto, me levantará do chão e me tirará o limão da boca. E então, meu amado, faça comigo e de mim o que bem entender…

-2013

A vez do poeminha

Reivindica aqui, o poeminha,
O que nunca lhe foi dado.
Evite, leitor, despercebido por ele
Passar direto ao poema do lado.

Perceba o poeminha!
Não recite por pena o coitado.
Tem como todos os outros sua página própria,
Não merece ser desprezado.

Não despreze o poeminha, leitor,
Quem o lê interpreta:
Faz também jus a mim.

Ora! Atenta até à rima,
O pobrezinho do poema,
E faz questão de ter começo, meio e fim.

-2013

espelhos

espelho primeiro

Como é a minha traqueia?
Como são meus lábios, minhas bochechas e minhas sobrancelhas?
Nunca vi meu rosto!
Minha face é um mistério pra mim mesmo.
Conheço apenas aquela refletida no espelho.
Espelho mentiroso, pois aquilo que me mostra não é o que vejo quando olho para baixo.
Meus olhos, nunca os vi. De que cor são?
Não tenho nenhuma memória de qualquer expressão.

Quisera eu ser espelho,
Para por pelo menos um instante saber
Quem realmente sou:
Ainda não mero reflexo,
Apenas luz incidente.

espelho segundo

Quem sou eu?

Luz incidente
indecente
indecisa
não contente
refratada

Eu sou luz refratária…

espelho terceiro

oriecret ohlepse

-2012

Para Miriam, algo sobre borboletas.

As borboletas que voam no céu
São diferente das que ponho no papel.

Aquelas voam,
As minhas já pousaram.
Aquelas serelepam,
As minhas se cansaram.

Aquelas trazem sorte,
As minhas, inspiração.
São pro pólen o transporte,
São pra mim a minha razão.

Não são as duas a mesma coisa?
Não são as duas uma só?

Felizmente não:
Aquelas trazem beleza aos olhos,
As minhas trazem ao coração.

Gabriel Martello
(11/12)