aquela noite

Lembras daquela noite que passastes comigo? Quando as paredes do meu quarto eram o limite do universo e que infinito era apenas o nosso amor? Eu tinha você nos meus braços e apertava todas as partes do teu corpo pra poder dizer que eu era dono de alguma coisa, mas não adiantava, eu era teu e teu era tudo o que eu era. Parecia que o Sol nunca nasceria de novo, mas do teu sorriso vinha a única luz de que eu precisava. Debaixo do meu cobertor não havia espaço pra memórias ou planos, apenas pra certeza de que jamais nos sentiríamos sozinhos. Eu punha músicas pra tocar e você fingia que as escutava quando na verdade ficava me olhando cantar, sabendo mais e mais a cada nova melodia que eu era o homem pra você. E você era a mulher a quem eu dedicaria todas as minhas canções. Você me tornava humilde e era na sua simplicidade que eu encontrava a minha extravagante alegria. Era nos teus cabelos que eu encontrava a minha paz, nas tuas mãos, o meu sossego, no teu colo, o meu propósito. Em silêncio, nos prometíamos. Acho que aquela foi a melhor noite da minha vida.

-2014

Terra

Que terra estranha é essa em que até meus sentimentos são estrangeiros? Em que não falo a língua de meus pensamentos e em que minha própria angústia não me faz sentido? Piso firme em um solo que não entende o meu caminhado, procurando um refúgio onde eu possa descansar sozinho. Tudo é novo e medonho, excitante e desconfortável. Só subo as ladeiras do dia porque à noite sei que exausto irei descê-las. Minhas únicas ladeiras que me fazem sentir saudades de casa. Casa que às vezes até esqueço onde fica. Meu coração então grita perdido no escuro de seu peito. No entanto, para minha sorte começa a chover fino e finalmente me acalmo, pois o cheiro de terra molhada é o mesmo seja ela estranha ou conhecida.

-2014

constante sentimento

No caderninho procuro o texto que outro dia escrevi. Lembro-me, ele emocionava e falava à mais profunda face da alma. Expressava o que mal podia ser compreendido e aliviava o coração da dor de não saber o que sente. Ele consagrava a pequena página e pedia pra ser manifestado. Ele era um texto herói e seus versos salvavam. Mas não acho o textinho.

-2014

Mostarda

A máquina em que escrevo agora não aceita bem minhas ideias. Pra que me obedeça tenho que bater com força em suas teclas senão as palavras não saem dela, como se de quando em quando ela descordasse do que tenho a dizer. Talvez ela ache que ridícula a ideia de estar sendo utilizada para escrever um texto metalinguístico, afinal seu propósito há de ser maios que a expressão de si mesma. Comprei-a em um mercado de pulgas no centro da cidade em um sábado qualquer. Entre as muitas disponíveis ela tinha o menor preço, além da cor mostarda que me chamou a atenção. Gosto muito de mostarda, a cor, apesar de também gostar do condimento. Essa ultima frase custou a sair, acho que minha máquina sente-se ultrajada. Tiro sua tampa superior para ver o mecanismo em ação: suas molas estão à mostra, seus parafusos descobertos, todas as pequenas engrenagens à vista. Vejo sua fita de tinta velha que ainda não troquei, nela a marca de milhares de palavras que não escrevi, de mensagens que não são minhas, destinatários que não conheço. A fita usada que vos escreve agora carrega a soma de histórias, a atemporalidade de diversas cartas de amor, a incomensurável insignificância de relatórios passados. E carrega também agora, aos poucos, sua autodescrição. Pela fita usada percebo que essa máquina na verdade não se importa em falar de si mesma. A dificuldade no datilografar não é relutância sua, mas apenas o reflexo de sua idade. Ela não se importa que eu a faça falar do que eu quero. Ela não se importa em falar de nada, pois essa maquina não é uma dama de ferro, ela é a ferramenta à qualquer um que precise materializar-se, é uma guerreira antiga.

-2013

prochain arrêt

Não percebi quando o casal entrou. Pararam bem na minha frente e quando olhei lá estavam de costas, apoiados no banco em frente ao meu. Ele tinha o cabelo moreno e curto e usava uma blusa com grandes listras verdes. Ela de vestido castanho, contrastando com o loiro dos longos cabelos que desciam pelos ombros. Num entrelaço de braços os dois se acomodaram e começaram a conversar. Falavam inglês, mas não alto o suficiente pra que eu discernisse o assunto. Só via as suas costas, mas eu sabia que o que ela dizia era sério. Discursava olhando a parede do vagão, mirando fixamente o aviso que proibia o fumo e a agressão física e verbal contra os fiscais do transporte. Não piscava, mas também não lia o que estava escrito, porque toda a sua concentração ia para o recado que agora dava ao homem, o recado mais importante da vida. Recado que dele recebia a mesma desatenção que a advertência sobre o fumo e os fiscais. Ele também estava concentrado, mas no rosto que não o fitava. Analisava cada curva, cada músculo em ação, cada poro magnífico. Num pequeno momento do dia, os dois esqueceram de si mesmos e existiam apenas um pelo outro. Os corpos já colados se apertaram ainda mais quando o vagão do metro encheu após ter parado na estação da rodoviária. Encheu mas continuava vazio. No descuido de um beijo o olho dela apareceu de relance, mas o êxtase foi momentâneo pois logo depois virou-se novamente. A barba era suja e a alça do sutiã lhe apertava demais, mas aquele era o casal mais incrível do mundo. Quando o sistema de som anunciou a próxima parada, para a minha desgraça, era a deles. Tentei fechar os olhos mas a tragédia não me deixou! Os dois viraram. De relance olharam pra mim, como se eu fosse uma outra placa de advertência sobre fumo e fiscais. Eles não eram mais interessantes. Não se amavam mais, não eram mais um casal, não eram mais nada. Eram um homem de barba e uma mulher de cabelos loiros que por um instante foram tudo pra mim.

-2013

não há palavras

As palavras estão por todos os lugares. São exibidas. Estão no silêncio do lago, de água verde e misteriosa. Estão no píer imóvel e solitário, que à noite não serve ninguém. Estão no cheiro do gim carregado pela brisa da noite. Estão nos ruídos dos jovens ao longe que acreditam existir sozinhos. Estão no cisne que desliza à margem, enroscado na própria melancolia. “Escreva-me! Escreva-me” – grita o cisne. Estão nas boias que não desistem na batalha da física, e nos barcos que dançam por obrigação amarrados uns aos outros na marola da madrugada. E em seus longos mastros, que junto das velas recolhidas formam ângulos no céu sem estrelas. Ângulos que me fazem tão, tão triste. Choro pelos ângulos, e até em minhas lágrimas estão as palavras. Citando a ardência do rosto, a permeabilidade da pele, a hidrodinâmica da gota. Tantas palavras pra tudo mas nenhuma pra mim. Sou como um dicionário que acha definição para tudo, mas que ao querer dar razão a si mesmo não encontra nada além da irônica e inútil metalinguagem.

-2013

Ela

Ela toca (e pega) fogo!
Intocável, insuperável, inalcançável e irreal também.
Delatora da arrogância alheia, cega à própria intransigência. Declara aos berros as suas certezas certamente mais certas que as da plateia que a ouve. Nem se dá conta de que fala sozinha, de que a verdadeira virtude é saber escutar. Sabe tudo e não sabe que nada sabe, que ninguém sabe nada, que sempre nunca se sabe mais e mais. Acha que soube agora tudo que há pra se saber. Hermética, um tanque de guerra de escotilha fechada pronto para botar abaixo toda e qualquer muralha a frente, mesmo que esta não esteja em seu caminho. Nada mais pode ficar de pé além da Verdade de v maiúsculo, a que diz que todos, menos os do contra, merecem ser ouvidos. E vai, a mil, como um ônibus que mal se prende ao chassi, carregando todo o passageiro companheiro, sabendo que chegará sã ao destino cada vez mais próximo. Sábia, sábia ela, que por não aceitar o assento em outro lugar, nunca vê, logo ali, o sabiá.

-2013

algo sobre tempo

Choveu forte em minha vida. Choveu forte a vida inteira. Às vezes, ventava também. Fazia frio também, às vezes. Mas chovia o tempo inteiro. Ainda chove. Quem sou eu para falar do tempo? Não há rugas em minha cara. Não há fios brancos em meus cabelos. Não há legados para minha existência nem netos para meus pais. Não há história para meu nome, não há honra para meus textos. Não há glória, não há paz. Não há experiência para meus medos, não há conforto para minhas angústias. Há de haver? Sou virgem de tempo; para mim, há de sobra. Enquanto outros possuem só a sobra dele. A primavera que Florbela cantou assim florida ainda não despontou em minha vida. Agora somente chove e venta e faz frio no inverno de uma espera. Onde foi parar meu tempo? Será que ele algum dia existiu? Será que ele algum dia retornará? Numa das manhãs de minha velhice, quando não houver sonhado, levantarei de um travesseiro limpo uma face cheia de pregas e me olharei então no espelho de uma casa que não é minha. Eu não tinha este rosto de hoje, Cecília, assim calmo, assim triste, assim magro. Em qual dos outros espelhos da vida ficou perdida minha face? Ficou perdida minha fúria, minha alegria e meu vigor? Em que espelho fiquei perdido eu mesmo? O incomensurável tempo vai de segunda a domingo e cabe na moldura de um reflexo apressado, que logo reflete algo novo. E que logo esquece como eu me parecia. Na segunda, o tempo passa pro moço no ônibus, que leva seu filho num carrinho e que o olha perplexo, com orgulho e ciúmes. Que vale dele as próprias causas e que espera os êxitos pra si não mais possíveis. Que deixou de ser homem pra tornar-se herói. Na terça, o tempo passa para as árvores, de cujos galhos são arrancadas as folhas secas que pagam respeito à federação do tronco até o instante da queda na batalha do outono. Umas envelhecem laranja incendiadas, outras num rubro doente, e algumas até num violeta desavergonhado. Mas o fim vem pra todas, independentemente do quão verde um dia foram. Na quarta, o tempo passa para o relógio que não controla os ponteiros. Carregam sozinhos a pesada soma dos dias no total das semanas e o produto dos meses na potência dos anos. Vai ligeiro na frente o dos minutos e atrás, retardatário e cruel, o caçula das horas. Na quinta, tira-se o relógio da parede, mas os ponteiros de um outro continuam rodando sem prestar atenção em mim. Que se quebrem todos os relógios do mundo para que nunca novamente saibamos quando sorrir e quando chorar! Na sexta, o tempo passa para o menino, que, em algum momento dos últimos segundos, tornou-se gente grande e deixou a doçura da infância pra nunca mais parar de amargar o sabor acre da madureza. No sábado, o tempo não passa para ninguém. No domingo, o tempo passa pra mim que mal o percebo passar. Dane-se minha idade! Vivi tempo suficiente apenas pra saber que preciso viver mais. Mas o tempo escorre por meus dedos e faz questão de se sentir escorrer. Faz questão de encurtar a alvorada de minha noite, Florbela! Tome tempo!, um pouco de realidade Espanca. Que da ilusão de seus ponteiros ninguém se ilude mais. Ninguém aguenta mais se iludir.

E que termine meu dia num crepúsculo atemporal.
Que para o tempo me saiba ceder… Para se eternizar…

-2013

s.t.

Adoro saber estar sendo olhado por alguém que não saiba que disso sei. Melhor ainda é quando quem olha é um desconhecido. Podemos então causar a primeira impressão que quisermos. Posso ser um lunático que vagueia sozinho, um galã da vida real ou um artista perturbado que senta no último banco do ônibus. Pouco importa, porque aquele você vai embora assim que quem olha pisca. O problema é quando se quer ser aquela primeira impressão pra sempre, quando ela tem importância. Aí quem tem que se olhar sou eu mesmo, e dessa vez sem que eu saiba. Mas não há motivo pra alarme, porque há sempre uma primeira chance de causar uma segunda impressão.

-2013

Sobre o natural

Naquela tarde de que nunca me lembraria, deitei na grama alheia. Estendi o lençol sobre o tapete da floresta, bem em cima das plantinhas cujo nome não me lembro. Pousei o corpo lentamente sobre a toalha e senti o meu peso maltratar a natureza. Enquanto o chão moldava a minha silhueta, me sentia observado. Sentia os habitantes locais percebendo a minha presença, desconfiados do corpo estranho que aparecera sobrenaturalmente. Eu era evitado, tudo acontecia em torno de mim, sem que eu participasse. Mas com o passar dos minutos e o transcorrer do sol, eu passei também a ser parte da natureza, simples unidade da vida no jardim. Os besouros, as abelhas, as formigas, as libélulas, agora ninguém mas parecia me perceber, eu era apenas um tronco contra o qual um alguém distraído voava dez vez em quando. Nunca foi tão bom ser ignorado. O estranho virara comum, o antigo se adaptou ao novo, talvez até sem perceber, mas se adaptou rapidamente. E eu fui o único que senti a mudança. É incrível – pensei naquela tarde – como nós somos a única parte da fauna que não nos adaptamos ao novo, digo ao verdadeiramente novo, ao sobrenatural. Não estamos no topo da cadeia, mas sim dentro dela, tacanhos. Cada dia que passa nos tornamos mais e mais parte dela, me sinto apenas mais uma barra nas grades da cela. Somos penitenciários do pudor, sentimento que só nós, animais humanos, sentimos. Uma girafa nunca se sentiu envergonhada, o porco nunca ficou sem graça. E muito menos os insetos do jardim tiveram o rosto em rubor porque sem querer esbarraram em mim. É bem verdade que não pediram desculpas, mas quem tem tempo pra desculpas quando se há por todos os lados flores a polinizar. Passei a tarde inteira naquela grama, lisonjeado pelo flerte dos insetos, com ciúmes apenas das margaridas, a quem eles davam mais atenção.

-2013