Triste não é ao certo a palavra

romance (2023)

Triste não é ao certo a palavra é o romance de estreia de Gabriel Abreu, publicado em abril de 2023 pela Companhia das Letras.

Sobre o livro
Um mosaico que extrapola a forma narrativa para construir um retrato delicado mas feroz sobre legado, memória e amor na relação entre mãe e filho.

Um diário, centenas de fotografias e sessenta e oito cartas é tudo que G. tem de sua mãe, além das lembranças de um passado comum. A caixa de papelão que contém todos esses elementos guarda também as expectativas e as angústias de um filho que tenta construir sua própria identidade e recuperar o contato que se faz ausente.

Partindo em busca dessa mulher – de quem ela foi antes da maternidade, da mãe que nasceu com ele, dos mistérios da individualidade –, G. revira bulas de remédio, diagnósticos médicos, mapas astrais, redige cartas, e-mails, questiona a si mesmo. E conclui: “Escrevo e envio esta carta para você para tentar reencontrar, em minha própria voz, a tua.”

Neste sensível e ousado romance de estreia, Gabriel Abreu monta um emocionante quebra-cabeças de registros, afetos e lembranças que apenas um filho, em vias de perder a mãe, pode ter.

“De uma angústia tão delicada quanto a própria estrutura da memória, Triste não é ao certo a palavra é sobre dar voz. Ao filho, enquanto ele ainda não aprendeu a falar. À mãe, a partir do momento em que ela já não pode mais falar. Já, ainda. São modos de imergir no tempo que Gabriel integra, aproxima, transpõe. Este livro é todo pelo desejo de dar borda, narrar a mãe adentrando seus arquivos é uma estratégia lírica de tornar a mãe possível, continuamente.” – Aline Bei

“Gabriel Abreu inventa neste livro uma nova língua, a dos sentimentos indizíveis. Na ausência definitiva da mãe, faz da perda um achado e do amor um gesto de persistente colecionismo: encontra vestígios, reúne partes, age sobre os vazios e por fim acomoda o imprevisto: a imensa quantidade de vida contida na morte. Como conceber o fim de uma mãe? É a pergunta que parece estar na superfície das linhas, mas apenas para resguardar com zelo outra ainda mais reveladora e audaz: como tornar perpétuo o seu surgimento? Um livro único, feito por um raro observador das emoções humanas.” – Juliana Leite

Trecho do livro
O caderno no fundo da caixa por pouco não se desfaz ao meu toque. Removo-o com cuidado e noto que a capa de couro antigo já descasca em vários pontos. As páginas têm aquele aspecto familiar de papel envelhecido, com uma tonalidade mais amarelada e pequenas manchas marrons. Reconheço imediatamente a tua caligrafia. Letras de forma em um estilo geométrico próprio da tua profissão de arquiteta. Leio a primeira anotação: Nasci às 21:15h com 3,650kg e 50cm de comprimento. É um diário, um diário do meu primeiro ano de vida. Percorro essa e outras entradas nas páginas empalidecidas pelo tempo. O registro da primeira vez que sorri, de um dente que despontou antes da hora, do doutor que disse que faço parte do grupo de 10% dos bebês mais altos do país. As palavras são tuas, mas quem fala sou eu. Sou eu quem descreve todos os primeiros acontecimentos, quem relata todos os detalhes da história como um narrador-personagem. Sou eu o protagonista, mas é você quem escreve. Nessa correspondência secreta em que mãe e filho dão voz um ao outro, você evoca minha primeira subjetividade e, nesse processo, eu lhe outorgo sua nova identidade materna. Leio minhas próprias memórias e acho que consigo te escutar, como se você falasse de mim, para mim, a partir de mim, como se ainda habitássemos um mesmo corpo. Leio e acho que posso escutar tua voz (levemente anasalada, o ritmo calmo e o timbre doce, o sotaque que para mim nunca foi discernível, a primeira coisa que os outros notavam). Leio e decido repetir a história. Escrevo para te restituir da fala que você perdeu. Escrevo porque acredito que quem está aqui não é mais minha mãe e porque daqui não enxergo mais as interseções entre o teu corpo e a tua mente. O corpo hoje é um corpo assistido, passivo, é um corpo alimentado, asseado e exercitado à força. Escrevo porque tua mente ficou na memória dos outros e hoje só se manifesta em resquícios, como nas poucas vezes em que você sorri e me pergunto se é a última vez. Ou como, quando ainda andava pela casa à tarde, parava ao lado da porta do meu antigo quarto e arriscava a cabeça para dentro, em busca de qualquer lembrança. Em algum canto recôndito da memória, você sabia o que havia se passado ali, você intuía que dentro daquele pequeno espaço assistira sua cria crescer. Mas com a mesma casualidade com que procurava, curiosa, algo que lhe pertencia, logo abandonava essa busca inútil e seguia seu vago caminho. Escrevo e te envio essa carta buscando o resgate de uma personalidade esvaída. Quem é você? Ou talvez já, quem foi você? O que te define então é a tua sanidade, as tuas faculdades mentais, tua profissão, teu papel de mãe? Ou só você aqui, sentada, olhando para o nada, para tudo, como uma criança que, assim como eu, acaba de nascer? Escrevo para dizer que encontrei o caderno dentro da caixa no topo da estante e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso.

Em outra linha no antigo diário, encontro: Estou danado, parece que comecei a descobrir o mundo de uns dias para cá. Entendo tudo o que falam comigo, se não sei alguma coisa é só me mostrar que não esqueço mais. Falo muito, uma língua que só eu entendo. Pergunto-me se você realmente não compreendia essa minha língua. Se ali, enquanto registrava diariamente minha descoberta do mundo, você já não ouvia, na tua própria voz, a minha. Se hoje não está, nesse mesmo idioma em comum, nossa única possibilidade de um diálogo. Escrevo e envio essa carta para você para tentar reencontrar, em minha própria voz, a tua.

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